João Paulo
Estado de Minas: 25/05/2013
Clarice comparava a arte ao texto: "Entro lentamente na escritura assim como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras" |
Há muitas identidades no destino de Clarice Lispector (1920-1977) e Hilda Hilst (1930-2004): eram ambas mulheres muito belas, escritoras dotadas de um senso de mistério singular, capazes de mergulhos intensos na alma, criadoras de estilos que nasceram e morreram com elas, inimitáveis, intensas e, mesmo com uma coerência que não se curvava às concessões, seres em busca de comunhão. Para Hilda e Clarice, a literatura existia para ser ultrapassada. O que elas queriam estava além das palavras.
Por tudo isso há um certo perfume de autobiografia em tudo que escreveram, como se a pesquisa proporcionada pela arte, ainda que por meio de personagens e ideias, jogasse luz sobre os motivos da existência. Ainda que pareçam muitas vezes autoras difíceis, é preciso entender que a radicalidade do que faziam é que dava o sinal de opacidade de uma escrita que, decifrada com os sentidos, se torna clareza, expressão do indizível.
Dois livros que acabam de ser lançados são instrumentos maravilhosos para quem quer conhecer melhor Hilda e Clarice e, para quem acha que já as entende em parte, um estímulo para ir mais adiante. Mesmo tanto tempo depois, há um inacabamento essencial na obra das escritoras, que é um desafio para o leitor honesto. Assim como Hilda e Clarice se entregaram à escrita como a uma paixão, o leitor precisa fazer sua parte. Por isso, ainda que sejam hoje conhecidas, estudadas e minuciosamente pesquisadas, as duas escritoras sempre deixam sendas a serem percorridas.
É o caso de Clarice Lispector – Pinturas, de Carlos Mendes de Sousa (Editora Rocco), e Fico besta quando me entendem, coletânea de entrevistas de Hilda Hilst, organizada por Cristiano Diniz (Biblioteca Azul, 236 páginas, R$ 44,90). E, para mulheres tão ciosas da beleza das formas (o Bem e o Belo, como na filosofia platônica, parecem advir da mesma emanação), é importante destacar que se trata de volumes bonitos, feitos com capricho gráfico e acabamento que dão prazer à leitura sempre renovada que convocam.
Carlos Mendes de Sousa, autor de Clarice Lispector – Pinturas, é português, professor de literatura da Universidade do Minho e autor de um dos mais importantes estudos sobre a obra da escritora, Clarice Lispector – Figuras da escrita, lançado no Brasil no ano passado pelo Instituto Moreira Salles. Seu novo estudo sobre a autora de A paixão segundo G. H. deixa de lado a tentação de totalidade de sua obra anterior para flagrar alguns instantes de uma relação muito particular: Clarice e as artes visuais. Todos conhecem a importância da pintura para a escritora, mas Carlos Mendes de Sousa vai além, procura, nesse prazer pressentido pelo visual, chaves que ajudem a entender melhor a obra e abram canais de significado para a existência da autora.
Há muitas Clarices dentro de Clarice. Da mesma maneira, há diferentes aproximações da escritora com a pintura. Em primeiro lugar, ela foi retratada diversas vezes em trabalhos de artistas como Jeronymo Ribeiro (quando Clarice ainda era estudante), Giorgio di Chirico, Alfredo Ceschiatti e Carlos Scliar, além de outros, como Di Cavalcanti e a pintora modernista Zina Aita, para os quais posou, ainda que as obras não tenham sido finalizadas. Além disso, em seu apartamento no Leme, como se vê em fotos presentes no livro, Clarice vivia cercada de arte por todos os lados. Sua casa era uma pequena galeria.
Ser incompleto Há nessa relação com a pintura uma certa homologia com a literatura de Clarice: o impulso para a obra e a difícil realização de um projeto capaz de representar o mundo com exatidão. Clarice, explica Carlos Mendes de Sousa, expõe “a tensão viva do inacabamento, da incompletude do ser”. O que pode ser o outro nome de qualquer forma de arte digna de sua vocação.
Mas o ensaísta português lembra ainda que a pintura invade outra dimensão da obra de Clarice, que se expressa sempre com certa atmosfera pictórica. A escritora precisa dar forma, muitas vezes, ao sentimento, ao que apenas intui, a um mistério difícil de nomear. E faz isso pintando com as palavras, como se desse a cada uma delas uma cor, uma textura, uma intensidade que compartilha o espaço da página com outras palavras-imagens.
Não faltam nos livros de Clarice cenas que evocam a pintura, personagens ligados à arte, momentos em que linguagem das artes visuais é instrumento literário para o texto. Há, nos romances e contos, jogos de luzes, esboços de retratos, presença da cor e uma visualidade que, por vezes, lembra a arte impressionista, que primeiro seduz pela beleza para depois cobrar da nossa capacidade de ver novos enquadramentos. Assim como a pintura ensina a ver, o texto de Clarice ensina a ler as palavras em outra chave, que muitas vezes antecede a razão.
Há outros elementos das artes visuais na obra da escritora, como a importância do olhar e até mesmo o uso de recursos gráficos, como a pontuação que foge às regras convencionais (começar uma frase com vírgula ou encerrar um texto com dois pontos), chegando à página de rosto de A hora da estrela, que justapõe vários títulos, quase como um poema concreto, dialogando com o espaço do papel na criação de uma forma original, quase abstrata.
Por fim, o autor analisa a própria produção pictórica de Clarice, pintora bissexta que, perto do fim, passa a dar mais atenção à pintura, num movimento ambíguo e complementar de fuga e concentração. Crítico literário, Carlos Mendes de Sousa se debruça com atenção e respeito sobre as pinturas de Clarice, buscando ler nelas o que é próprio da arte visual e o que dialoga com sua literatura. Em sua leitura dos quadros, flagra momentos que respondem ao projeto de uma artista única, que variava a forma de expressão para dar conta do mesmo empenho em desvelar o mistério, de resto insondável. A matéria da coisa.
Hilda Hilst, autora que ficou conhecida por obras obscenas, afirmava: "Posso blasfemar muito, mas meu negócio é o sagrado, é Deus mesmo. Meu negócio é com Deus" |
Própria voz Hilda Hilst sempre reclamou de não ser lida como merecia. Tanto em quantidade quanto em qualidade. Sabia que tinha o que dizer, que sua literatura se aproximava do coração da vida e que os leitores e a crítica se afastavam dela por motivos extraliterários. Queixou-se muito, a vida toda, desse divórcio com o leitor.
Nos anos 1990, numa tentativa radical de se aproximar do público, lançou quatro livros eróticos (O caderno de Lory Lamb, Contos d’escárnio, Cartas de um sedutor e Bufólicas), quase pornográficos. Vendeu como nunca, mas perdeu parte da respeitabilidade conquistada em 40 anos de carreira. Nesse momento, quando tudo indicava que finalmente Hilda e o leitor viviam um encontro, a escritora passa a ser procurada pela imprensa, mas está menos disposta a troca. Um desencontro trágico que vai até sua morte, em 2002.
Este percurso está registrado no livro Fico besta quando me entendem, no qual Cristiano Diniz reúne 20 entrevistas, que cobrem o longo período que começa em 1952 e vai até a morte de Hilda Hilst, completando um arco de meio século.
Consciente de sua literatura, Hilda Hilst fala de seu universo composto de poemas, prosa de ficção, crônicas e teatro; identifica suas principais influências (de Heidegger a Kafka, de Freud a Reich, passando por Kazantzákis, Beckett e Simone de Beauvoir, num espectro impressionante de leituras que contempla até mesmo físicos nucleares); fala de amigos e amores; comenta a leitura de críticos.
Em outros momentos, questiona a falência do escritor num mundo superficial; mostra sensibilidade social para as injustiças; reflete sobre a dimensão ética da literatura; revela a intimidade de seu retiro na Casa do Sol, em Campinas; e, por fim, trata das polêmicas experiências de gravação de vozes captadas de outras dimensões. Ela, que sempre buscou ser ouvida pelos vivos, mergulha intensamente no propósito de ouvir os mortos.
A escritora vai das observações bem-humoradas às percepções filosóficas, sempre atenta ao cenário intelectual do país. O tom é muitas vezes queixoso, mas nunca distante. Hilda fazia força para comunicar, mesmo quando parecia acreditar que a tarefa era impossível.
A contradição entre uma literatura sofisticada, de difícil consumo, e a busca de reconhecimento perpassa todos os momentos da vida da escritora. Nas últimas entrevistas, Hilda está menos paciente, iracunda, como quem não precisa mais seduzir nem agradar ninguém. Em sua longa preparação pela palavra, talvez sentisse a aproximação do silêncio.
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