quarta-feira, 22 de maio de 2013

Não saia de casa - Marcelo Coelho

folha de são paulo

O problema de Barack Obama, disse outro dia uma ex-assessora, “é que na verdade ele não gosta muito de gente”. Até surpreende, continuou Neera Tanden, “que ele seja um político. Não telefona para ninguém e não é próximo de muitas pessoas nem no seu partido”.
Apesar das muitas dificuldades e hesitações do presidente americano, eis aí um motivo a mais para eu simpatizar com ele. Custa a confessar, mas sinto o mesmo: não acho fácil gostar de gente.
Por espírito democrático, durante anos eu me sentava ao lado do motorista de táxi. Até que aprendi o óbvio:  quem não tem disposição para conversar com o taxista faz melhor se ficar no banco de trás. Não garante que você fique a salvo de ouvir bobagens, mas protege um pouco.
O inferno são os outros, disse Sartre —e, se a frase costuma ser citada por todo mundo, não é menos verdade que funciona especialmente bem entre intelectuais.
Claro, para citar agora a Simone de Beauvoir, ninguém nasce intelectual. A pessoa se torna intelectual, ou nerd, ou matemático, porque prefere a companhia de livros, computadores e números à dos “amiguinhos” da escola.
Concluo, ainda militando a meu favor, que está errada uma frase clássica da direita populista. A saber, a de que “esses intelectuais de esquerda não gostam de povo”.
Não é que não gostem de povo. Não gostam de gente, em geral. Marilena Chaui, por exemplo, afirma detestar a classe média.
Se definirmos classe média como o grupo que se vê refletido nas páginas de “Veja”, concordo. A classe operária, se for definida como o grupo que se vê refletido nos programas do Datena, não se sai melhor.
Sim, tenho bons amigos e preciso deles. Se vou a um jantar, divirto-me, conto casos, derrotei há muito a própria timidez. Mas faço um esforço, cada vez maior, aliás, para sair de casa.
“Nunca saí de casa sem ter levado porrada”, resumiu o escritor Pedro Nava. Felizmente não digo o mesmo. Às vezes cumpro até um desafio: o de obter um sorriso, uma risada, de cada pessoa com quem encontro. Como certo personagem de Racine, cubro de flores a borda do grande abismo.
Depois, tudo fica tão mais fácil com a internet. Mesmo a ida ao shopping, relativamente segura e confortável, perde para a comodidade de se comprar qualquer porcaria em casa.
Escrevo essas coisas pensando no problema das cidades. Nem preciso falar da Virada Cultural. A iniciativa é excelente (eu é que não vou). Serve para que os habitantes de São Paulo se reapropriem de um espaço tomado pelos carros e pelos mendigos.
Mas é uma luta de vida ou morte, como se viu com as vítimas desse último fim de semana.
O problema não se limita a São Paulo. Tome-se a maratona de Boston. A ideia, ainda uma vez, é inventar um uso “saudável”, ou “cultural”, para o espaço urbano. Não se trata mais de viver a cidade no seu dia a dia, mas de produzir “eventos”. Esses se esgotam em si mesmos.
Não são mais procissões ou comícios, e se alguém quer cuidar da saúde pode perfeitamente correr sozinho. A ideia é juntar gente. Celebrar, se quisermos, a experiência de um corpo coletivo.
A luta de vida ou morte, também nos Estados Unidos, se fez presente. Uma bomba caseira pode fazer mais estragos do que dez arrastões paulistanos.
A saída parece ser a de tornar o espaço público um espaço vigiado. As câmeras previnem, ou pelo menos ajudam a punir, a ação dos agressores da cidade.
O direito de ir e vir, de conviver com os semelhantes, torna-se uma espécie de “sursis”, de liberdade condicional —e a igualdade se resolve nos números afixados no crachá do maratonista, se não forem os números da ficha policial.
Ao colapso do espaço público corresponde a hipertrofia do espaço privado. O símbolo disso veio também dos Estados Unidos. Um maníaco sequestra menininhas, cobre de tábuas as janelas da própria casa, promove toda sorte de abusos, e os vizinhos não sabem de nada.
Fechado no seu núcleo protetor, sem admitir um raio de sol dentro de casa, aquele infeliz cultivava o fungo fantasioso do incesto.
Lá fora, na maratona, ou na escola modelar, outro maníaco dispara a esmo ou detona bombas na multidão. Pedofilia e terrorismo se completam. Entre o espaço público e o privado, inventou-se a terra de ninguém, a prisão sem dono, com jaulas a céu aberto: o campo de Guantánamo.
Quem sabe? Na escala dos que não gostam de gente, talvez eu não seja dos mais exagerados.

Um comentário:

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