Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 12/05/2013
Roberto Carlos: esse cara não quer deixar falar nem das roupas que ele usa, quanto mais de sua vida |
Em boa parte dos países democráticos, quando um artista ou personalidade se tornam alvo de interesse público, não demora para aparecer sua biografia. Autorizadas ou não, as publicações surgem atrás do anseio da sociedade em saber mais sobre as histórias de vida, inclusive em relação a assuntos espinhosos e controversos, que nem todos gostariam de divulgar.
No Brasil é diferente. Por aqui, até então, por causa da legislação em vigor, o que prevalecem são as biografias “chapas brancas”. Ou seja, só saem das editoras livros da vida dos artistas, celebridades ou figuras públicas com a devida autorização deles ou de familiares, no caso de pessoas que já morreram. A situação tem privado, ao longo dos anos, o acesso a importantes fatos da cultura e da vida política nacional. Tem muita gente querendo mudar esta história.
São inúmeros os casos de personalidades que se fizeram explorando os próprios feitos e a imagem à exaustão, em todos os meios de comunicação, e, de uma hora para outra, decidem desautorizar que se escreva a seu respeito. O mais recente e célebre caso é o do cantor Roberto Carlos. Desde que conseguiu na Justiça um acordo para a proibição da venda da biografia Roberto Carlos em detalhes, do historiador e jornalista Paulo César de Araújo, ele vem implicando com inúmeros outros autores.
Recentemente, os advogados do cantor enviaram notificação extrajudicial pedindo a interrupção da venda e o recolhimento dos exemplares à disposição em livrarias de Jovem Guarda: moda, música e juventude, de Maíra Zimmermann, lançado em 4 de abril pela Estação Letras e Cores. Apesar das críticas ao seu comportamento, o cantor não parece disposto a mudar de ideia.
Por meio do seu escritório de advocacia, Roberto Carlos afirmou que, em breve, divulgará um manifesto de celebridades apoiando a ideia de proibir a circulação de biografias não autorizadas. O assunto tem provocado insatisfação em vários segmentos. “Estão ameaçando com este manifesto de celebridades. Enquanto não acontecer de divulgarem, não falarei mais nada. Estou esperando. Sou totalmente contra este tipo de proibição”, diz Ruy Castro, em tom de irritação. Autor de clássicos do gênero, como Anjo pornográfico, sobre a vida e obra de Nelson Rodrigues, e Carmen, sobre a cantora Carmen Miranda, o autor reclama da situação do projeto que libera a publicação de biografias não autorizadas no Brasil. “Está parado.”
Enquanto o governo não avança, artistas como Roberto Carlos, se mobilizam nos bastidores, porém evitando polêmicas. A assessoria de imprensa do cantor informou que, no momento, o porta-voz do cantor, o advogado Dody Sirena, não deverá se pronunciar.
O diretor da Editora Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, sente que o país ainda não conseguiu resolver o assunto. “Estou menos otimista hoje. Mas acho que, mais dia menos dia, se quisermos nos transformar num país como os outros e ter acesso a nossa história livremente, a lei vai ter de mudar. Os esforços de artistas como Roberto Carlos apenas mancham a biografia dele, que, um dia, será contada com liberdade.”
A aprovação da nova legislação, para ele, só confirmaria um dos pressupostos da democracia: a liberdade de expressão. “Se as personalidades que poderiam ter as vidas transformadas em livro não entenderem que isso engrandece a cultura, a política e a sociedade do país e, ao contrário, atuarem no sentido de coibir a manifestação livre e crítica dos relatos, só estariam se desvalorizando. Não entendem que tiveram méritos e, em alguns casos, deméritos que deveriam ser conhecidos.” A situação já chegou a prejudicar a Companhia das Letras, que teve de retirar de circulação Estrela solitária, biografia do jogador Garrincha, também de Ruy Castro, antes de ganhar a liberação na Justiça.
Excessos e reparação Simpático à mudança da legislação, o advogado especializado em propriedade intelectual Renato Dolabella defende que a situação pode movimentar o mercado editorial nacional. “O espírito da nova lei é para que se possa atender o acesso maior da sociedade às informações. Se houver excessos, o afetado poderá buscar reparação. Os abusos não serão tolerados.” O advogado acha a discussão necessária, pois diz respeito à questão do direito autoral, do mercado editorial e ainda do acesso às informações.
“A proibição atual limita muito o potencial de criação de obras e, em certas situações, pode gerar extremos. Não vejo conteúdo ofensivo nenhum em situações como o recente caso de proibição exigida pelo cantor Roberto Carlos para um livro sobre a moda da Jovem Guarda. A mudança pode ser positiva.” Nem todos pensam assim. Recentemente, sob alegação de defesa das biografias de políticos, houve um retrocesso no processo de aprovação da legislação pela Câmara dos Deputados.
Entenda o caso
• Como funciona hoje
A Lei 10.406, de 2002, determina que qualquer pessoa, ou, se for falecida, seus familiares, tem que autorizar
o uso de imagem para realização de biografias. Caso contrário, este tipo
de livro não pode ser publicado. Há exceções, como, por exemplo, quando o uso da imagem seja fundamental para administração da Justiça ou para manutenção da ordem pública.
• Como poderá ficar
A proposta de mudança da lei pretende inverter a lógica vigente. Se for aprovada, não haverá mais possibilidade de os retratados ou familiares proibirem biografias. Se houver abusos, como declarações ofensivas ou mentirosas, deverão ser acionados os mecanismos já existentes, que podem ser usados para punir ou pedir retratação aos autores do dano.
Manobra para proteger políticos
O Projeto de Lei 393, de 2011, do deputado Newton Lima (PT-SP), que propõe nova lei para regular os direitos autorais, foi analisado inicialmente pela Comissão de Educação e Cultura e, em seguida, pela Comissão de Constituição Justiça (CCJ), ambas na Câmara dos Deputados. Foi aprovado nas duas comissões, sendo que na CCJ em caráter conclusivo. Ou seja, poderia ir para apreciação do Senado sem ter que passar pelo plenário da Câmara.
Porém, o deputado Marcos Rogério (PDT-RR) entrou com recurso pedindo vista, para que o projeto seja discutido em plenário antes de seguir para o Senado. Com isso, a discussão tende a se ampliar. “Foi uma manobra do deputado, que, inconformado pela decisão unânime nas comissões, acabou usando de um expediente que poderá significar, na prática, que o projeto não seja votado nesta legislatura. É lamentável para a democracia brasileira”, afirma Newton Lima. Para ele, manter a lei como está é um ato de censura prévia, incompatível com uma nação civilizada. “Não há algo parecido no mundo”, aponta.
Só depois de superada a fase de análise do projeto na Câmara é que ele iria para o Senado para ser avaliado. Lá, ainda poderiam ser propostas alterações. Só assim o texto voltaria novamente à Câmara. Diante da situação, é difícil determinar quando, como e se o projeto deverá virar lei. “A Casa tem uma dinâmica que não me permite ter esperanças em relação ao futuro deste projeto. A menos que a comunidade de escritores e editores pudesse se mobilizar para pressionar o presidente da mesa para realizar a votação”, sugere Newton Lima.
Censura prévia O jornalista e escritor Vagner Fernandes, autor da biografia Clara Nunes – Guerreira da utopia, lamenta a situação. “É incompreensível que um projeto de tamanha relevância, que promove um avanço na liberdade de expressão no país, volte para ser analisado pelo plenário da Câmara em função do recurso de um deputado que deseja discutir questões em prol da classe política.”
Na opinião do biógrafo, o deputado Marcos Rogério está mais preocupado com a possibilidade de personagens políticos terem suas vidas expostas do que com o fim da censura a textos biográficos. “É uma questão que merece ser tratada e discutida com urgência. Até quando ficaremos reféns desse processo de mercantilização da honra que familiares de biografados e muitos artistas nos impõem? Censura não se debate. Censura se derruba", afirma.
O deputado Marcos Rogério foi procurado pela reportagem, mas sua assessoria informou que estava em viagem e não era possível localizá-lo.
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