Cidade tem 89 casos de estupro por grupo de 100 mil habitantes, contra uma média de 26,8 nos Estados Unidos
Estatísticas ganharam contornos dramáticos com o caso de mulheres que viveram em cativeiro por dez anos
O espectro da violência em Cleveland é traduzido pelo índice de estupros na cidade: 89 por 100 mil habitantes, ante uma média de 26,8 nos Estados Unidos, de acordo com dados do FBI relativos a 2011. Foram 354 estupros em Cleveland apenas naquele ano.
As estatísticas ganharam contornos dramáticos quando, na última semana, os holofotes estiveram sobre a casa de Ariel Castro em busca de detalhes da crueldade desferida contra as meninas que cresceram algemadas.
Algo parecido com o que ocorrera em 2009, no outro lado da cidade, quando a residência de Anthony Sowell foi descrita como uma espécie de cemitério particular.
O método utilizado por ele para enterrar suas vítimas -no porão, no quintal e dentro de sua casa- depois de estuprá-las fez com que o odor dos cadáveres chegasse às ruas vizinhas durante dois verões.
Mas, como ocorreu no caso das garotas subjugadas por Castro, ninguém percebeu qualquer sinal que pudesse ter abreviado o sofrimento das vítimas.
"Pensávamos que o cheiro vinha da fábrica de linguiça do lado de onde Sowell morava. Ele sempre foi um cara normal, que convidava os outros para o churrasco. Depois passaram a dizer que era carne de cadáver", diz a vizinha Ashleigh Perry.
Ariel Castro também era um "cara legal, que fazia churrasco com os conhecidos", segundo relatou à Folha Elsie Cintron, vizinha do cativeiro de onde Amanda Berry, 27, foi libertada na última segunda-feira.
Amanda deixou o local ao lado de uma menina de seis anos, que um exame de DNA comprovou ser filha dela e de Castro, o seu algoz. Depois, mais duas vítimas foram resgatadas por policiais.
A polícia negou reiteradas vezes durante a semana que tenha ignorado denúncias de vizinhos nos últimos anos.
As autoridades informam que não há registros de relatos de suspeitas.
Independentemente da omissão policial, há quem cobre uma atitude de vigilância de qualquer cidadão.
"A polícia tem responsabilidade, mas a população também precisa se conectar, prestar atenção ao redor e tentar ajudar. Não podemos ser completamente desinteressados", afirma Charles Yancey, fundador de um projeto de liderança comunitária na cidade.
ALVOS
Ao contrário de Castro, que selecionou garotas com laços familiares mais fortes, Sowell preferiu mulheres com histórico de drogas, álcool, pobreza e abandono.
Suas famílias diriam, mais tarde, que tais circunstâncias levaram a polícia a tratar as pistas com descaso.
"Eles só vêm aqui no bairro para investigar drogas. Se tivessem trazido um cão, teriam percebido", diz Perry.
Até a conclusão desta edição, a polícia não respondera aos pedidos de entrevista para que pudesse rebater as críticas dos moradores do bairro, em que a maioria dos habitantes é de origem porto-riquenha, como Castro.
A cidade faz força para esquecer o rastro de atrocidades deixado por ele.
Balões e cartazes com frases de esperança foram colados nos postes da rua onde as três mulheres ficaram confinadas.
Mas, espalhadas pela rua, cópias de um bilhete com um pedido de pistas para desvendar o assassinato de um jovem parecem mostrar que a violência está cotidianamente presente nas áreas onde os crimes ocorreram.
Na noite de quinta-feira, a reportagem da Folha circulou a pé pela área onde as meninas foram capturadas há dez anos. As vias desertas e largas intimidam.
Esse ambiente favorece a prática de crimes, segundo Megan O'Bryan, presidente do Cleveland Rape Crisis Center, que apoia vítimas de abuso sexual.
"Não confio em estatísticas de estupros, pois é um crime que muitas vítimas nem chegam a registrar. É incontável. Mas o crime se propaga mais entre pessoas que vivem em situação mais frágil, como imigrantes ilegais", afirma O'Bryan.
São exatamente essas pessoas os moradores da rua onde ficava a casa de Sowell. Há dezenas de casas lacradas, com vidros quebrados. Alguns imóveis foram invadidos por ladrões de metais dos encanamentos.
Sowell, cuja casa acabou demolida, foi condenado à pena de morte em 2011. O mesmo pode ocorrer com Ariel Castro.
Recuperação emocional é vista como possível no caso de 2013
ERICA GOODEDO “NEW YORK TIMES”Dia após dia, era dele a voz que elas ouviam, dele o rosto que viam.Era ele que as atormentava e que as liberava, era ele que -por qualquer capricho- tinha o direito de violar suas mentes e corpos, o guardião das chaves e o fornecedor de água e comida. O domínio dele era uma casa decrépita, com janelas bloqueadas por tábuas. Seu controle era absoluto.
Para as mulheres prisioneiras por uma década em Cleveland, o homem que as sequestrou era, para todos os propósitos, seu mundo.
Terapeutas com experiência no tratamento de sobreviventes de traumas dizem que a maneira pela qual as três mulheres -Amanda Berry, 27; Georgina DeJesus, 23; e Michelle Knight, 32- interpretaram esse relacionamento terá importância crítica em sua recuperação, bem como seus esforços, ainda que limitados, para preservar sua identidade diante da intimidação física e psicológica.
As mulheres foram enfim libertadas na última segunda, depois que dois vizinhos responderam a um pedido de ajuda de Amanda e arrombaram a porta da frente da casa. A filha de Amanda, uma menina de seis anos nascida durante o cativeiro, também deixou o local com elas.
Ariel Castro, que de acordo com a polícia manteve as mulheres prisioneiras, inicialmente amarradas e acorrentadas no porão, é alvo de quatro acusações de sequestro e três de estupro.
David Wolfe, cientista sênior e psicólogo do Centro para o Vício e Saúde Mental da Universidade de Toronto, afirma que, em situações de abuso sexual de longo prazo e ameaça à vida, as vítimas inevitavelmente desenvolvem emoções complicadas e ambivalentes com relação ao perpetrador, a fim de sobreviver.
"Você transforma o diabo em algo com que possa conviver", diz ele, acrescentando que a primeira coisa que desejaria saber de alguém que sobreviveu a tamanha provação seria "quais eram seus sentimentos para com a pessoa durante o cativeiro".
DIFERENÇAS
Wolfe e outros terapeutas apontam que todas as experiências traumáticas são diferentes e que muitos detalhes sobre as provações enfrentadas pelas vítimas ainda não foram revelados -alguns dos especialistas acreditam que, para o bem delas, não deveriam ser.
Mas eles dizem que muita gente consegue se recuperar de abusos, mesmo que extremos, com a ajuda da família e de amigos e com o uso de técnicas terapêuticas especificamente projetadas para seus casos -e contando com privacidade, tempo e segurança para aprender a conviver com suas experiências.
"Sabemos que existe determinação e que a recuperação é possível", afirma Judith Cohen, diretora médica do Centro de Estresse Traumático em Crianças e Adolescentes do Allegheny General Hospital, em Pittsburgh.
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