domingo, 12 de maio de 2013

Lençóis secando na grama

folha de são paulo

IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Lençóis secando na grama
AMILCAR BETTEGA
O sol do meio-dia deixa-os ainda mais brancos, obrigando os olhos a fecharem-se, enquanto que o único desejo é beber o mundo. E o mundo, por enquanto, é um mar de campo, mar verde e seco, onde flutuam lençóis recém-lavados sob um céu infinitamente azul. Tudo paralisado nesse instante, nesse meio-dia de janeiro, quando as cigarras começam a enlouquecer.
O ar é puro, às vezes vem um cheiro de pêssego do pomar nos fundos da casa. E de longe vêm as vozes das mulheres, algumas risadas, e o barulho da roupa. Então a água, o sabão, outros lençóis e as mãos que batem surdamente o tecido molhado: tudo é lavagem ainda. Tudo é suspensão.
Agora os lençóis secam na grama, imensos panos de algodão que em breve serão recolhidos, antes que o calor comece a ressecar-lhes as fibras.
O menino está lá diante do mundo, os olhos castigados pela luminosidade excessiva. As cigarras se esganiçando dão a verdadeira dimensão do silêncio do campo ao meio-dia. Logo alguém vai chamar para o almoço, talvez o som de um rádio e o noticiário serão ouvidos ao longe. Todos os sons são ao longe. Tudo acontece à volta. Mesmo as cigarras, cujo retinir tende ao paroxismo, não estão ali. Por enquanto não há nada além de imensas manchas brancas sobre a grama. Silenciosas. E quarando.
Quarando, quarando, ele se repete a palavra que --já desconfia -- ficará ali, permanecerá como parte daquela paisagem, mesmo que o mundo avance.
Palavras e paisagens que não podem estar em outro lugar nem em outro tempo. Palavras e paisagens, mas não é isso o mundo? Nunca mais ele dirá, ou pensará, "quarando". Nunca mais, depois daqueles verões infinitos, de tardes infinitas suspensas pelo canto agonizante das cigarras. Para recuperar a palavra, para senti-la outra vez se formando na garganta, se mexendo dentro da boca antes de sair à procura de um significado que será sempre impreciso na sua imaginação, para isso vai ser preciso ser menino outra vez.
Voltar aqui, diante dos lençóis que secam sob o sol desse meio-dia sem fim, será a única forma de dizer "quarando" outra vez. E outra vez imaginar significados, inventar um corpo para essa palavra que é apenas som e o movimento de letras que se roçam umas contra as outras dentro da boca, trocar o sentido cada vez que pensar na palavra, cada vez que sentir que ela se forma no interior da garganta. Não será isso o mundo? Inventar sentidos na sombra fluida da palavra, acumular imagens na retina para voltar sempre à mesma paisagem que é a síntese antecipada desse mundo, o resultado da sobreposição de todas as paisagens que se descortinarão diante do menino que agora, isolado de tudo, no silêncio do janeiro mais afastado no tempo, olha abismado e quase cego para os lençóis incomensuravelmente brancos estendidos na grama, secando sob o sol.





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