sexta-feira, 28 de junho de 2013

Concerto muda a noite na periferia de SP

folha de são paulo
Cidade Tiradentes recebeu o Quarteto de Leipzig, um dos mais prestigiados do mundo, em apresentação gratuita
Público de 120 pessoas ouviu obras de Haydn e Schubert; para muitos, foi o primeiro contato com a música clássica
MORRIS KACHANIDE SÃO PAULOA noite de anteontem foi histórica para Cidade Tiradentes, rincão da zona leste a uma hora e meia do centro da cidade, com sorte, e que mais comumente aparece no noticiário associado aos altos índices de vulnerabilidade social.
Pela primeira vez em seus mais de 30 anos de existência, este bairro dormitório com 215 mil habitantes recebeu um quarteto de cordas. E não foi uma formação camerística qualquer. Tratava-se do imponente Quarteto de Leipzig, alemão, que já gravou mais de 90 CDs e apresentou-se nas mais prestigiadas salas do mundo afora.
O concerto, no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, foi gratuito. Com instrumentos italianos dos séculos 17 e 18, os alemães tocaram um quarteto de Haydn e, na sequência, 40 minutos de Schubert ("A Morte e a Donzela").
"Foi da hora. Eles pareciam sincronizados. [A música] Te faz pensar na vida, no cotidiano, esquecer seus problemas", afirmou a estudante Patrícia Ferreira. "Ela te leva a uma outra realidade, na qual não há peso. Gostaria de viver nela para sempre", engrossou sua colega, a também adolescente Priscila Ferreira.
A costureira Marinez de Alencar Costa, 45, conta como tentou convencer as vizinhas a irem: "Tentei explicar que isso passa na novela, que é uma música que é só tocada e que vai direto na alma".
O curador do Centro Cultural São Paulo, Dante Pignatari, responsável pela empreitada, só se irritou quando, depois de Haydn, uma mulher com a filha no colo lhe perguntou: "Eles vão tocar a mesma coisa?".
A maioria do público, de 120 pessoas, nunca havia assistido a um concerto. A indumentária contrastava com o visual austero dos músicos, todos de preto: muita gente de sandália, e os indefectíveis manos e minas de boné e moletom, às vezes com o capuz erguido. Também estavam presentes muitos jovens de bandas de igrejas evangélicas.
Se houve um problema, foi o da "turma do fundão", minoria composta por adolescentes irrequietos, que ia perdendo a paciência na medida em que o concerto evoluía. Ao fim, Matthias Moosdorf, violoncelista, avaliou que a execução de apenas uma peça teria sido mais adequada.
Mas o balanço foi bom. "Qualidade, qualquer público reconhece. Trazer um quarteto desta categoria é uma questão de respeito, e abre as fronteiras", diz Pignatari.
"Claro que a música clássica tem sua complexidade e exige um background. Mas ao mesmo tempo, ela traz uma atmosfera que toca diretamente o coração", afirma Moosdorf.
Há um mês, o pianista André Mehmari recebeu vaias e xingamentos durante apresentação para 700 alunos da rede pública, em Campinas. Ele não considera que o incidente tenha relação com classe social: "É um problema de educação generalizado. O violonista Fábio Zanon tocou para alunos de uma escola AA e teve o mesmo problema", diz.
UTOPIA
Cidade Tiradentes tem o segundo menor orçamento entre as subprefeituras de São Paulo e seu IDH é dos mais baixos. O bairro teve o maior índice de abandono do ensino médio, e mais de 22 mil famílias possuem renda per capita de até meio salário mínimo, segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.
Funk e sertanejo predominam por lá. E há algumas iniciativas dos CEUs nos bairros vizinhos. Cinema? Só a 40 ou 50 minutos dali.
O Centro de Formação Cultural foi inaugurado por Kassab em dezembro. Não é exagero chamá-lo de "utopia construída", como o faz seu coordenador, Guilherme Cesar, 30.
O prédio custou R$ 24 milhões, tem 7.300 m² e conta com biblioteca, cinema e espaço expositivo, além de laboratórios e ateliês. Só não é 100% construída a utopia porque o centro simplesmente não dispõe de dotação orçamentária para este ano, e está às moscas.
As únicas atividades atuais são dois cursos, de iniciação artística e formação vocacional. Receberam um total de 950 inscrições, mas só 150 alunos foram matriculados.
"Não temos dinheiro nem para comprar um pote de tinta para o ateliê. Nem site temos", afirma Cesar.
O ex-secretário municipal de cultura, Carlos Augusto Calil, conta que o pedido de orçamento foi solicitado no apagar das luzes da gestão Kassab, mas não atendido. E ficou nisso.
Consultada, a atual gestão da Secretaria de Cultura informou que o centro está operando com recursos de dotações de outros espaços. E que uma dotação específica para o espaço será programada para o ano que vem.

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