Cidade Tiradentes recebeu o Quarteto de Leipzig, um dos mais prestigiados do mundo, em apresentação gratuita
Público de 120 pessoas ouviu obras de Haydn e Schubert; para muitos, foi o primeiro contato com a música clássica
Pela primeira vez em seus mais de 30 anos de existência, este bairro dormitório com 215 mil habitantes recebeu um quarteto de cordas. E não foi uma formação camerística qualquer. Tratava-se do imponente Quarteto de Leipzig, alemão, que já gravou mais de 90 CDs e apresentou-se nas mais prestigiadas salas do mundo afora.
O concerto, no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, foi gratuito. Com instrumentos italianos dos séculos 17 e 18, os alemães tocaram um quarteto de Haydn e, na sequência, 40 minutos de Schubert ("A Morte e a Donzela").
"Foi da hora. Eles pareciam sincronizados. [A música] Te faz pensar na vida, no cotidiano, esquecer seus problemas", afirmou a estudante Patrícia Ferreira. "Ela te leva a uma outra realidade, na qual não há peso. Gostaria de viver nela para sempre", engrossou sua colega, a também adolescente Priscila Ferreira.
A costureira Marinez de Alencar Costa, 45, conta como tentou convencer as vizinhas a irem: "Tentei explicar que isso passa na novela, que é uma música que é só tocada e que vai direto na alma".
O curador do Centro Cultural São Paulo, Dante Pignatari, responsável pela empreitada, só se irritou quando, depois de Haydn, uma mulher com a filha no colo lhe perguntou: "Eles vão tocar a mesma coisa?".
A maioria do público, de 120 pessoas, nunca havia assistido a um concerto. A indumentária contrastava com o visual austero dos músicos, todos de preto: muita gente de sandália, e os indefectíveis manos e minas de boné e moletom, às vezes com o capuz erguido. Também estavam presentes muitos jovens de bandas de igrejas evangélicas.
Se houve um problema, foi o da "turma do fundão", minoria composta por adolescentes irrequietos, que ia perdendo a paciência na medida em que o concerto evoluía. Ao fim, Matthias Moosdorf, violoncelista, avaliou que a execução de apenas uma peça teria sido mais adequada.
Mas o balanço foi bom. "Qualidade, qualquer público reconhece. Trazer um quarteto desta categoria é uma questão de respeito, e abre as fronteiras", diz Pignatari.
"Claro que a música clássica tem sua complexidade e exige um background. Mas ao mesmo tempo, ela traz uma atmosfera que toca diretamente o coração", afirma Moosdorf.
Há um mês, o pianista André Mehmari recebeu vaias e xingamentos durante apresentação para 700 alunos da rede pública, em Campinas. Ele não considera que o incidente tenha relação com classe social: "É um problema de educação generalizado. O violonista Fábio Zanon tocou para alunos de uma escola AA e teve o mesmo problema", diz.
UTOPIA
Cidade Tiradentes tem o segundo menor orçamento entre as subprefeituras de São Paulo e seu IDH é dos mais baixos. O bairro teve o maior índice de abandono do ensino médio, e mais de 22 mil famílias possuem renda per capita de até meio salário mínimo, segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.Funk e sertanejo predominam por lá. E há algumas iniciativas dos CEUs nos bairros vizinhos. Cinema? Só a 40 ou 50 minutos dali.
O Centro de Formação Cultural foi inaugurado por Kassab em dezembro. Não é exagero chamá-lo de "utopia construída", como o faz seu coordenador, Guilherme Cesar, 30.
O prédio custou R$ 24 milhões, tem 7.300 m² e conta com biblioteca, cinema e espaço expositivo, além de laboratórios e ateliês. Só não é 100% construída a utopia porque o centro simplesmente não dispõe de dotação orçamentária para este ano, e está às moscas.
As únicas atividades atuais são dois cursos, de iniciação artística e formação vocacional. Receberam um total de 950 inscrições, mas só 150 alunos foram matriculados.
"Não temos dinheiro nem para comprar um pote de tinta para o ateliê. Nem site temos", afirma Cesar.
O ex-secretário municipal de cultura, Carlos Augusto Calil, conta que o pedido de orçamento foi solicitado no apagar das luzes da gestão Kassab, mas não atendido. E ficou nisso.
Consultada, a atual gestão da Secretaria de Cultura informou que o centro está operando com recursos de dotações de outros espaços. E que uma dotação específica para o espaço será programada para o ano que vem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário