Modelo de financiamento da cultura no
Brasil deve levar em conta a dimensão crítica e transformadora das
produções incentivadas, separando-as daquelas destinadas apenas ao
mercado de entretenimento
Fabio Mechetti
Estado de Minas: 08/06/2013
No vaivém das
correntes discussões sobre as mudanças na Lei Rouanet, várias propostas
vêm sendo debatidas: ampliação do Fundo Nacional de Cultura,
descentralização da concentração de investimento no eixo Rio-São Paulo,
contrapartidas às empresas patrocinadoras, porcentagem de participação
real das empresas em projetos etc. Como não poderia deixar de ser, as
consequências da adoção de novas medidas que venham a modificar o
caminho atual causam disputas acirradas no meio cultural brasileiro.
Porém, aquilo que mais importa em toda a questão raramente é discutido
ou mesmo mencionado, ou seja: o que é cultura, e o que realmente merece e
deve ser incentivado, reavaliando a própria intenção original da lei.
A
Lei Rouanet surgiu em 1991 como resposta à constatação, até tardia, de
que governos (não só no Brasil, mas no mundo) são limitados naquilo que
podem e devem fazer diretamente com recursos próprios. Muitas coisas
podem ser mais bem realizadas, de modo mais eficiente e econômico, pela
sociedade civil, com a criação de instrumentos legais e fiscais que
facilitem o investimento privado em áreas estratégicas, mas,
teoricamente, não essenciais à boa governança de uma nação. Ao criar
mecanismos de isenção fiscal a empresas e indivíduos, governos
possibilitam a participação da sociedade como um todo neste processo.
Em
conceitos amplos como esse de “cultura”, existem várias possíveis
interpretações do termo, modeladas no uso coloquial da palavra e,
principalmente, seu uso anexado a interesses de ordem subjetiva e,
muitas vezes, política. Em situações como essa é sempre recomendável nos
atermos às definições imparciais, como aquelas encontradas nos
dicionários oficiais da língua portuguesa.
Houaiss define
cultura como: “ação, processo ou efeito de cultivar; cabedal de
conhecimentos de uma pessoa ou grupo social; forma ou etapa evolutiva
das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais; complexo de
atividades, instituições, padrões ligados à criação e difusão das
belas-artes, ciências humanas e afins”.
Já no Aurélio, outras
conotações adicionais são propostas: “refinamento de hábitos, modos ou
gostos”, ao mesmo tempo que contrapõe e compartimentaliza a definição,
ao citar como alternativa a cultura de massa, aquela “imposta pela
indústria cultural”.
Chamo a atenção dos leitores às palavras
sublinhadas. Elas indicam claramente o peso dado aos princípios básicos
da aplicação da cultura que definem sua real função e necessidade dentro
de um processo de formação de uma sociedade mais civilizada ou, por que
não, culta.
Existe hoje uma forte tendência, reforçada pelos
meios de comunicação e, infelizmente, adotada por vários governos, de
que cultura é sinônimo de entretenimento, diversão. Ouve-se
frequentemente as frases: “quero ir ao cinema para me distrair...”, “não
quero ir ao teatro para pensar, e sim relaxar...”, “já trabalho muito
durante o dia, à noite quero esquecer”. Todas essas frases refletem uma
realidade inquestionável. Entretanto, elas definem também uma questão de
política cultural de suma importância: se as atividades ditas
“culturais” praticadas pela sociedade são escolhidas pelo seu caráter de
entretenimento, diversão, esquecimento e não pelo seu caráter de
“formação evolutiva dos valores intelectuais etc.”, cabe ao governo
incentivá-las? Ou mesmo, se concluirmos que elas necessitam de apoio
governamental por serem de interesse social, seria isso sinônimo de
política cultural a ser aplicada pelo Estado?
Incentiva-se aquilo
que, primordialmente, tem mérito, mas não recursos para seu
desenvolvimento. Aquele ou aquilo que já dá lucro, ou cuja função traz
benefício mínimo à sociedade, não necessita de incentivo governamental.
Ou sobrevive pelo apelo popular ou valor intrínseco, ou caduca.
Investe-se
naquilo que dá resultados. Um bom investidor na bolsa de valores não se
apega emocionalmente às suas ações, mas ele é levado a agir pela
racionalidade de números que mostram resultados positivos. Investe-se
naquilo que, potencialmente e baseado em fortes dados reais, virá a dar
resultados maiores do que o montante originalmente aplicado.
Evento e processo
Retornando
às definições dos dicionários acima citados, podemos concluir que
cultura não é evento e, sim, processo. Pela sua própria natureza, ela só
se manifesta de maneira contínua, focada, empregando-se elementos das
mais variadas formas de manifestações artísticas que visam não ao
momento em si, mas à transformação paulatina e constante de uma
sociedade, possibilitando a revelação e o aprimoramento do “cabedal de
conhecimentos” que a permeia. A arte, a ciência e a educação são os
maiores remédios a combater a massificação da ignorância. Se permitirmos
o uso da cultura como analgésico e não como antídoto, aliviamos
temporariamente o sintoma, mas não curamos a sociedade da perniciosa
influência que a cultura de massa impõe a essa mesma sociedade.
Essa
distorção do sentido original de incentivar a boa cultura não se limita
à Lei Rouanet, mas ela se faz presente em praticamente todas as esferas
governamentais. Exemplo disso foi o recente embate entre a Prefeitura
do Rio de Janeiro e a Orquestra Sinfônica Brasileira. Citando a
necessidade de economizar recursos para aplicá-los na preparação da Copa
do Mundo e das Olímpiadas (ambos eventos temporários, lucrativos, que
deveriam facilmente ser apoiados pela iniciativa privada), o prefeito
carioca retirou subsídio correspondente a 25% do orçamento total de uma
das mais tradicionais orquestras do país. Ou seja, a manutenção de um
organismo cultural que vem tendo um papel importante no processo de
emancipação cultural do Rio de Janeiro, um instrumento essencial na
qualificação da cidade maravilhosa como polo cultural internacional além
do samba e do carnaval, ficou relegada a segundo plano diante do
desafio de conseguir recursos adicionais a serem gastos em eventos que,
pela própria popularidade e lucratividade, poderiam se manter com as
próprias pernas. Felizmente, o prefeito voltou atrás na sua decisão,
embora citasse argumentos subjetivos e imediatistas para justificá-la.
Outro
exemplo do perigo em deixar levar por uma interpretação errônea do que é
cultura e do que deve ser incentivado é a criação do Vale Cultura. A
ideia em si é digna de elogios. Passa a toda a sociedade, a mensagem de
que cultura é importante e de que todos merecem acesso a ela. Pensando
assim, o governo facilita esse acesso ao promover uma ação social que
convida o brasileiro a frequentar atividades culturais que venham a
contribuir para que a sociedade brasileira caminhe rumo a um
amadurecimento cultural real.
No entanto, o custo estimado para a
implantação do Vale Cultura é de R$ 7 bilhões por ano, enquanto o
orçamento de todo o Ministério da Cultura, de acordo com seu próprio
site, chega perto dos R$ 3 bilhões. Ao não definir claramente qual o
benefício disso em relação ao seu custeio, estabelecendo parâmetros
específicos para a utilização do vale em real cultura, como se depreende
da sugestão de TV a cabo ser uma opção plausível, o governo entra
justamente na armadilha citada pelo Aurélio: permitir que o cidadão seja
“entretido” por aquilo que é imposto pela indústria de cultura de
massas às custas do contribuinte.
Assim sendo, uma boa política
cultural seria a aplicação de recursos do governo (na verdade, do
contribuinte, já que o governo em teoria não tem dinheiro próprio) em
atividades culturais e educacionais, instituições, organizações “ligadas
à criação e difusão das belas-artes” que visem à formação evolutiva
cultural de sua sociedade, cobrando daqueles que se propõem a trabalhar
pela busca de uma sociedade melhor, resultados palpáveis que justifiquem
esse fundamental investimento. Por meio da capacidade e qualidade de
trabalho de seus habitantes, nosso país encontrará a produtividade que
define as grandes nações, ao mesmo tempo que o cultivo da civilidade
levará certamente a mais igualdade, justiça e respeito por todos.
Investir
pesadamente na educação e cultura de nosso povo é a melhor maneira,
embora não a mais rápida, de alcançarmos legitimamente uma posição de
destaque internacional consolidada na capacidade criativa, produtiva e
crítica de todos os brasileiros.
. Fabio Mechetti é diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário