Romance de Ariel Magnus, Um chinês de
bicicleta é bom exemplo de humor em literatura. Trama passada na capital
argentina surpreende o leitor pelo estilo livre e inventivo do autor
Paulo Bentancur
Estado de Minas: 08/06/2013
O grande humor não é aquele que faz
brotar o riso fácil (porque evidente e, assim, de superfície). O grande
humor, como o grande drama, faz pensar. Embora, claro, sendo humor, com
um sorriso enviesado entre uma reflexão e outra. E o grande humor,
principalmente, é composto por elementos do inusitado. Desta forma, nos
pega na contramão. E o mundo sai dos eixos. Se o mundo sai, imagine-se
uma cidade (no caso Buenos Aires). É o que Ariel Magnus, um
inclassificável ficcionista, consegue em seu premiado romance Um chinês
de bicicleta. Pôr-nos, leitores, numa capital portenha que nunca
sonhamos, nem nas mais delirantes fantasias.
Até o prêmio que o
romance de Magnus mereceu combina com a natureza de sua ficção. La outra
orilla (A outra margem) é a reunião dos primeiros relatos de Julio
Cortázar, publicados em 1945, quando o escritor ainda estava testando a
mão, sem atingir a consistência e o equilíbrio do fantástico em
Bestiário, que publicaria já morando em Paris, em 1951. Em homenagem a
esse Cortázar desconhecido até mesmo de muitos cortazarianos, o prêmio
adotou o nome da estreia do autor de Rayuela. Talvez porque a principal
marca desse prêmio seja seu caráter singular, destinado, provavelmente, a
trazer para o primeiro plano obras ameaçadas pela marginalidade devido
exatamente a seu temperamento diferenciado.
Ariel Magnus
consegue, já nas primeiras páginas, penetrar como poucos penetraram em
Buenos Aires. Paradoxalmente, nesse mergulho ele justamente se afasta da
cidade de que nos acostumamos a ver referida. A capital argentina
parece então converter-se numa espécie de Nova York latino-americana,
com seu bairro de imigrantes chineses, uma cidade dentro de outra
cidade, um mundo diferenciado. Outra cultura imersa na cultura que nos é
familiar. Outro olhar sobre a realidade que muda o nosso olhar. Muda,
fundamentalmente, a forma como o protagonista e narrador, Ramiro
Valestra, vê as coisas.
Fosforinho
O
conflito começa com uma série de incêndios em lojas de móveis. Um
piromaníaco ateia fogo em dezenas de lojas, de propriedade de judeus, e
as perdas são totais. Perto de um dos sinistros, Li, um chinês, inábil
no manejo de sua bicicleta, é pego com uma caixa grande de fósforos, uma
pedra e o veículo, a bicicleta, insuficiente para garantir-lhe
agilidade na fuga. Vai a julgamento. Arranjam-lhe uma testemunha que na
verdade nada testemunhou, Ramiro. É sobre tais eventos e julgamento tão
controverso que Ramiro conta em primeira pessoa.
Não está
convencido da culpa de Fosforinho. Tudo leva a crer que de fato foi ele,
mas as razões do chinês são inócuas demais e Ramiro percebe que existem
motivações mais amplas e possíveis culpados que não o frágil e –
estamos imersos em uma comédia – ousado ratinho de olhos puxados.
Em pleno tribunal, Fosforinho, ou Li, pega Ramiro como refém e se safa diante de policiais, advogados e juiz.
Aí
começa o romance propriamente dito: o sequestro de Ramiro, que é levado
para o bairro chinês e ali passa a viver, longe de casa, onde mal
dividia o espaço com a mãe alcoólatra e seu trabalho com computadores,
no qual tem a habilidade de um hacker.
O sequestro revela-se sui
generis. Ramiro é deixado solto, no início eventualmente vigiado por
algum conhecido de Li (que quase sempre está ausente), e a seguir solto
de fato – livre para transitar pela comunidade oriental. O bairro é tão
amplo, o que é tão real quanto metafórico, Buenos Aires parecendo nunca
vir à tona de dentro desse território onde os costumes são outros. De
tal forma que, se antes disso tudo o narrador fora traído pela namorada
não só com o melhor amigo mas, segundo este, com vários outros, agora
vai gradativamente tomando contato com um novo sentimento (o amor) por
uma chinesa que ele supôs, primeiro, mulher de Li, depois, ex-mulher de
Li, depois, irmã de Li. Ao sabê-lo sem parentes, simultaneamente a uma
espécie de síndrome de Estocolmo, quando o argentino se apega ao
sequestrador numa amizade que não admite traições, a experiência amorosa
revela-se finalmente em sua vida eivada de improvisos e precariedades,
e, como tudo que é novo e intenso, com rituais que ele não domina.
A
forma do enamoramento chinês, inevitavelmente diversa da nossa, serve
sob medida como retrato da própria vivência do mais radical dos afetos.
Ramiro tem de ir devagar. Tudo, vindo de Yintai, obedece com rigor a um
jogo severo de lenta aproximação. Ela tem um filho de uma relação
anterior acerca da qual não fala muito mas deixa claro que de amor
jamais se tratou. Depois de algumas semanas em que os encontros entre
ambos, inclusive já na fase das intimidades, se dão ao ar livre, porém
em ambientes ermos, clandestinos, Yintai apresenta aos familiares Ramiro
como namorado.
Na sequência, vem a gravidez, gravidez que,
embora sem razões sustentáveis (Yintai deixa claro, com seu temperamento
e sua cultura, que não haverá outro homem enquanto o argentino estiver
com ela), Ramiro não tem certeza da própria paternidade. Mas só no
começo. Como no caso do sequestro, pouco a pouco, vai se entregando à
nova realidade como, no fundo, a sua primeira realidade na qual, apesar
do estranhamento externo, a identificação pessoal o faz incorporar-se ao
novo mundo – agora também seu.
Estilo
Os
inúmeros capítulos em que Li se ausenta têm sua explicação mais tarde. O
chinesinho investiga o incendiário, pelo qual ia pagar a culpa. Expõe
sua tese a Ramiro, mostrando que são os próprios proprietários das lojas
que as queimam para que, seguradas, o seguro lhes indenize ao ponto de
poderem renovar-lhes instalação e estoque.
Ariel Magnus escreve
como Ramiro se move naquela comunidade. Solto, na verdade. Podendo sair
de lá e retornar sempre, quando quiser. A sintaxe, intensamente
virgulada, não prende as frases; antes as deixa libertas. E assim os
parágrafos recebem a respiração ampla de quem conta tudo que tem de
contar, quase sem pausas. O leitor que as faça.
Difícil fazê-las
numa leitura escorreita, estimulada por observações surpreendentemente
engraçadas e capazes de instaurar um novo contexto. É preciso admitir:
não estamos na China nem na Argentina. Estamos na confluência de duas
civilizações. O protagonista, presa de seu iPod, quando sequestrado no
início sentiu falta do carregador do aparelho, cuja bateria logo morreu.
Mas
as possibilidades de comunicações e linguagem mostram-se renovadas a
seguir. Conforme o estilo diferenciado e ousadamente livre do autor
mostra desde o primeiro capítulo neste livro, sem nenhum exagero,
inclassificável.
. Paulo Bentancur é escritor e crítico.
Um chinês de bicicleta
De Ariel Magnus
Editora: Bertrand Brasil, 280 páginas, R$ 34
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