Bofetada da lenda
RIO DE JANEIRO - Nelson Rodrigues ia todo domingo ao Maracanã. Era míope, não usava óculos, não enxergava o que se passava no gramado e, mesmo assim, ninguém escrevia sobre futebol como ele. Seu segredo: radiografar a alma dos jogadores. Daí porque suas crônicas podem ser lidas e saboreadas hoje, 50 anos depois, sem que os jogos que as inspiraram tenham qualquer importância.Mas, se Nelson foi o maior cronista esportivo da língua, não foi o primeiro. Mario Filho, seu irmão, antecedeu-o por 20 anos e, a partir de memórias esgarçadas, construiu todo um passado de lenda para o futebol. Exemplo: foi Mario quem deu ao Fla-Flu as dimensões épicas que, depois, o clássico se viu obrigado a honrar. O perigo é quando tomamos Mario, o fabuloso cronista, pelo historiador que ele também queria ser.
Na esteira da recente reabertura do Maracanã, o cronista e blogueiro Eduardo Cyntrão me alerta para o fato de que um dos episódios mais dramáticos da saga do estádio, narrado por Mario Filho, pode não ter acontecido: a bofetada do uruguaio Obdulio Varela no brasileiro Bigode na final da Copa de 1950, entre Brasil x Uruguai, vencida pelos uruguaios por 2 x 1. Para Mario, ela determinou o resultado do jogo.
"Só Mario Filho viu essa bofetada", diz Cyntrão. "Não há uma foto, uma imagem, um registro original dessa suposta agressão. Segundo Mario, a bofetada ardeu no rosto da multidão'. Mas já imaginou as 200 mil pessoas presentes no Maracanã vendo um estrangeiro dar uma bofetada num brasileiro? A geral iria invadir o campo e linchar os uruguaios. Seria a maior tragédia do esporte em todos os tempos". E Cyntrão conclui: "Eu tinha 19 anos e estava lá --e também não vi nenhuma bofetada".
Mario Filho era craque em fazer da realidade lenda. Mas nesta, quem sabe, sua mão escorregou e ele tenha feito da lenda realidade.
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