sábado, 8 de junho de 2013

João Paulo - Política contra a pólis‏


Estado de Minas: 08/06/2013 

Tem gente que acha que a política acabou. No terreno da racionalidade econômica, o melhor é deixar a política de lado e tomar decisões responsáveis em nome do bem comum. Em outras palavras, no reino da economia, a política é um entrave. No entanto, o que fica cada vez mais claro em todo o mundo, inclusive no orgulhoso Primeiro Mundo (um conceito tópico que de geopolítico se tornou valorativo), é que a economia não apita nada, sendo mero reflexo de decisões políticas, ainda que invisíveis e pouco democráticas.

Todo ordenamento que vem sendo questionado nas ruas, como as decisões que enxugam a ação do Estado em nome do modelo de lucro financeiro, nada mais é que exercício de dominação política. O desaparecimento do político é expressão de uma superpolítica, que intensifica decisões concentradoras e esvazia, por incrível que possa parecer, o núcleo da própria economia. Se entendemos por economia a forma de organizar a produção e distribuição de riquezas em nome do bem comum, nunca fomos tão pouco econômicos. Os organismos financeiros, hoje, são estruturas políticas, só que não conhecem a democracia, já que se sustentam ideologicamente em valores como liberdade e mercado, inquestionáveis desde que tomados por racionais.

Há algumas décadas, o chamado modelo dos tigres asiáticos era celebrado e exibido em praça pública como exemplo da validade dos propósitos ultraliberais. Hoje, seu fracasso é reduzido a contratempo e ainda se evoca o mesmo modelo para realidades que lutam com muito mais dificuldades e conseguem resultados mais satisfatórios, embora usem instrumentos distributivos que vão na contramão da financeirização, da competitividade extrema e do fundamento no consumo. A implantação de mercados produtores em contextos de desvalorização dos mecanismos de defesa do trabalhador, como a China, em vez de ser visto como prova da ineficiência do sistema, surge como alternativa para redução de custos, ainda que à custa da afronta aos direitos trabalhistas, considerados hoje como entulho protecionista nos chamados países centrais. Ou seja, exporta-se a violência para se importar lucro. Como sintetizou Viviane Forrester em Uma estranha ditadura (Editora Unesp), “o ultraliberalismo quis fazer economia e só fez negócios. Ele quis fazer negócios e só fez especulação”.

Com isso, o que se observa hoje não é o esquecimento da política, mas sua exacerbação em nome de interesses específicos. O mundo e o Brasil não estão menos politizados, mas na verdade se encontram politizados ao extremo. Extremo conservadorismo. Entender algumas ações aparentemente corriqueiras emanadas do Estado e de seus aparelhos ideológicos (nunca o conceito de Althusser foi tão exato, sobretudo no mais orgulhoso deles, a imprensa) é uma forma de recuperar a necessidade de uma dimensão verdadeiramente democrática da vida social. A política, hoje, joga contra o patrimônio, como dizem os locutores esportivos. A política não respeita a pólis.

Os exemplos são muitos, em vários setores. Mais que crítica de ações pontuais ou decisões de governos específicos, são comprovação da tese da indisponibilidade democrática das decisões de caráter “econômico”. Quando se anunciam ações que dizem respeito à vida da sociedade, com o fundamento que se trata de atitude voltada apenas para a regulação dos mercados ou do funcionamento racional da economia, é preciso fazer soar a campainha da desconfiança. A política é importante demais para não ser nomeada. Quando se torna invisível, seja em função do apelo do mercado ou da justiça como instância final, algo anda mal. A pólis foi posta em escanteio.

Caminhões e tributos

Uma decisão recente, que tem origem no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), quer proibir o trânsito de grandes veículos de carga nas estradas mineiras durante os dias de jogos da Copa do Mundo. A argumentação é que se trata de medida reguladora para uniformizar a fiscalização. Se você não entendeu, não está sozinho. Além da inversão entre prioridades – o funcionamento da economia fica em segundo plano em relação ao evento esportivo –, a medida parece apostar numa desmobilização nacional em razão de outros interesses.

A Copa do Mundo e sua realização no Brasil têm sido alvo de dezenas de decisões afins. O volume de exceções é tão grande que foi preciso articular e negociar uma Lei Geral da Copa para fazer fluir atos de explícita desobediência da legislação corrente. Para que a Fifa, uma empresa privada, pudesse lucrar sem impedimentos, foi liberada a venda de bebidas nos estádios, aprovadas obras sem discussão pública, mudadas regras de tributação isentando empresas estrangeiras, entre outras. Agora querem resolver a questão das péssimas estradas mineiras fechando as cancelas.

Num filme dos irmãos Marx há uma cena impagável em que um deles, ao arrumar a bagagem para viagem, se vê com pedaços de roupa sobrando fora da mala. Não pensa duas vezes: pega a tesoura e decepa mangas de paletó e pernas de calças. O puxadinho legal que está sendo feito para aconchambrar os esbirros da Copa se parece, em essência, com essa solução “marxista”. Já que a lei atrapalha, é só cortar uns pedaços e depois remendar lá na frente. Quando a Copa foi nos EUA, os estádios feitos para outros esportes foram adaptados. Aqui, se jogam no chão arenas prestantes para erguer outras mais caras no “padrão Fifa”. Com relação às estradas, andamos precisando é de melhorias e duplicações, não de proibição de circulação.

Outra medida recente contra a pólis veio da área jurídica do Estado. Incomodada com as publicações do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Estadual de Minas Gerais (Sindifisco), que cumpre seu papel de tornar públicas decisões na área tributária para esclarecimento do cidadão contribuinte. O governo ingressou com ação judicial para proibir a veiculação das informações. Não se trata de contestação, já que os números são públicos e cobram transparência legal (a maioria deles fornecidos por documentos oficiais), mas de tentativa de impedir a circulação, ainda que na forma de anúncios pagos, numa evocação de cerceamento de informação ou censura pela via judicial.

No caso específico das tarifas de energia, se o Sindifisco paga para mostrar números públicos e a Cemig paga igualmente para mostrar os seus, caberia ao bom jornalismo dirimir as dúvidas e informar bem o cidadão. Se o debate deixa o espaço editorial para frequentar a fatia comercial, mais uma vez a pólis tem sido denegada por decisões políticas que buscam a capa do tecnicismo.

Aliás, o debate sobre a liberdade de informação é outro elemento em que se digladiam interesses econômicos e políticos, só que com sinal trocado. Aqui, em vez de a política subsidiar a economia, são os interesses econômicos das empresas que se traduzem como defesa de valores absolutos do campo político, como a liberdade de informação. O fiador e destinatário deste direito, o público, quase sempre está fora do debate entre regulacionistas e ultraliberais, como se liberdade de imprensa fosse um arranca-rabo entre jornalistas e os donos da voz.

Entrar na justiça

Organizado por um grupo de professores da UFMG, ligados ao Centro de Referência do Interesse Público, está nas livrarias uma coletânea que toca em profundidade em outro aspecto da denegação da política, a exacerbação da justiça, não como valor, mas como instância instrumental. É nesse sentido que se tem falado tanto ultimamente em judicialização da política e politização do Judiciário. Recuperar esse debate, de forma ampla e interdisciplinar, é o projeto do livro Dimensões políticas da justiça, que está sendo lançado pela Editora Civilização Brasileira. O livro, organizado por Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Fernando Filgueiras, Juarez Guimarães e Heloísa Starling, segue a linha de outros projetos do mesmo grupo, que mergulharam no debate da corrupção e do republicanismo. Um trabalho coletivo responsável que honra a universidade mineira.

O livro é uma coletânea de mais de 50 ensaios, escritos por especialistas nas áreas de direito, ciência política, comunicação, literatura, história, saúde coletiva e filosofia, que enfrentam a questão a partir de visadas que se somam, como os olhos multifacetados de uma mosca. Um esforço interdisciplinar que se volta para uma pergunta básica: como construir uma concepção política de justiça. Há, como identificam os pesquisadores, diferentes questões políticas, sociais, econômicas e culturais que envolvem a produção da justiça. Dessa forma, se o objetivo é avançar até uma concepção de justiça politicamente orientada, o que dá universalidade é exatamente o interesse público.

Com isso, o livro parte do estudo das diferentes tradições do pensamento político, analisa o ensinamento dos clássicos, estuda as várias escolas jurídicas e filosóficas que trataram do tema. Os artigos cobrem ainda análises sobre a dimensão política e sociológica, percorrem os caminhos dos movimentos inspirados pela ideia de justiça em sua dimensão ética e prática, avalia os movimentos históricos que lutaram pela ampliação da justiça, se aprofunda na dimensão simbólica da justiça numa sociedade como a nossa, marcada historicamente pelo seu avesso, acompanha a mobilização da sociedade em direção ao resgate dos seus princípios.

A justiça, como mostra o livro, é um eterno a caminho de expansão de direitos. Democracia não é só obedecer às leis, mas instituir novos direitos. Há muito o que fazer nos campos da justiça social, ecológica, de gênero, indígena, racial, militar, eleitoral, informativa, trabalhista. E há, sobretudo, a necessidade cada vez mais premente de tornar a justiça justa, por meio de ações que recuperem a origem popular de toda lei e do horizonte moral que as inspira. Dimensões políticas da justiça é um instrumento útil nesse debate, que hoje pode se apresentar como um conflito de poderes republicanos, mas que esconde dimensões muito mais radicais de cisão da sociedade e da política brasileira.


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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