domingo, 16 de junho de 2013

Fabrício Corsaletti

folha de são paulo

Completamente


Nem sei como dizer isso, senão dizendo exatamente isso: faz mais ou menos uma semana que ando muito, muito feliz.
Não sei por quê, talvez não haja motivo algum, mas estou a ponto de sair por aí cantando aquela música do Waly Salomão com o Jards Macalé: "Me sinto feliz/ Me sinto muito feliz/ Me sinto completamente feliz/ Completamente/ Completamente feliz/ Completamente".
Não, os problemas não desapareceram. Continuam reais como um travesseiro de agulhas e até ganharam maior nitidez, iluminados pelo seu contrário --essa densa, aérea e flamejante alegria.
Olho pra cada um deles com cuidado, e a conclusão é uma só: eles poderiam levar um homem à loucura. E no entanto o homem que é obrigado a lidar com eles está bem; mais que bem: contente; mais que contente: exultante de energia vital.
E tampouco acertei na loteria. Não escrevi os contos que queria escrever. Fiz recentemente duas ou três maldades de que me arrependo e não consigo me perdoar.
Pra piorar, basta pensar um pouco no que acontece no mundo pra gente perder o ânimo de escovar os dentes ou se reproduzir.
Mesmo assim, tenho vivido com a sensação de que, se eu quisesse, poderia botar fogo na água --e não como o Anhanguera, que pra impressionar os índios atirou um fósforo dentro de uma tigela de pinga.
Ilustração Guazzelli
Os livros de poesia parecem querer saltar das estantes. Abro o primeiro que encontro pela frente e leio algumas linhas. As palavras atingem sua potência máxima; são vibrantes, coloridas, indestrutíveis; e estão determinadas a não baratear o que quer que seja. Esses caras não passaram pela Terra como turistas. Eles viram tudo o que conseguiram ver e deixaram alguns registros pro futuro.
De repente, entendo que sou, que somos, o sonho desesperado de Maiakóvski, de Drummond, de Alejandra Pizarnik. Seria triste demais ser apenas seu pesadelo. Releio os poemas mais dolorosos desses poetas, e rio tanto que começo a chorar.
Lá fora a luz é dourada, rosa, azul, branca e vermelha. São as cores da manhã. Quando vem a noite observo o céu com estrelas, nuvens e lua nova -e um preto que é azul-escuro, que é preto, que cintila, que tem profundidade e transparência, que dá terror e paz. Era assim que as coisas eram; é assim que elas ainda são. É isso que chamo fazer parte da história, estar vivo --e não morto-- e não ter nome, nem ideologia e nem controle sobre as pessoas que amamos.
Otimismo, pessimismo --essas classificações já não me dizem nada. Estou inteiro dentro do ar que respiro e me chega aos pulmões. Parado, dormindo, caminhando. Sou uma máquina de fabricar felicidade. Estou urrando mentalmente e falando sozinho pela casa.
E, como Oliverio Girondo, tenho que me controlar pra não ajoelhar no meio da rua, erguer os braços e gritar, com uma voz virgem e ancestral:
- Viva o esperma, ainda que eu pereça!
Fabrício Corsaletti
Fabrício Corsaletti, cronista da revista "sãopaulo", nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de "Esquimó" (Cia. das Letras, 2010) e "Golpe de Ar" (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas, na revista "sãopaulo".

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