Outra mobilização
Ela tem fonte desconhecida e total independência de fins e de ação. Aí está um grande perigo
Pareceu um só movimento com muitas causas, arregimentadas pelas passagens de ônibus, e ocasionalmente aproveitado por arruaceiros. Dessa aparência decorreu uma interpretação que dificulta ainda mais o já difícil entendimento do que está expresso nas ruas ocupadas.Os incidentes no Congresso, na Assembleia Legislativa no Rio, em vários pontos de São Paulo e em mais cidades fixaram a interpretação de que exprimem a rejeição dos manifestantes à política. Tal rejeição nem é só dos que se manifestam nas ruas, mas, no caso, convém observar algumas ressalvas.
A diferença entre as duas pontas de apenas 24 horas paulistanas, da noite de segunda para a de terça, faz uma sugestão importante. A maior das manifestações em São Paulo dissolveu-se, já em altas horas da segunda-feira, como um exemplo de conduta democrática, eloquente na dimensão e ordeira na conduta. O anoitecer de terça, no entanto, marcou o início de arruaças e violências extremas, praticadas por pessoas que foram se encontrando nas cercanias da prefeitura, quase sempre tipos cujo aspecto não deixa muita dúvida sobre sua índole. Todos mais ou menos à mesma hora, e com a naturalidade de quem soubesse por que os demais estavam ali. O mesmo que se passara no ataque à Assembleia Legislativa no Rio, como sequela concomitante e noturna à passeata ordeira.
O que explicaria tamanha modificação de conduta em São Paulo e o surpreendente desvio de propósito no Rio?
Aqueles e os vários estouros de violência foram atribuídos a gente que se desgarrou do rio principal dos manifestantes. As circunstâncias e modos como se deram, porém, sugerem haver uma segunda mobilização, de fonte desconhecida, com total independência de fins e de ação. E aí está um grande perigo.
É previsível, e mesmo desejável, que as manifestações reivindicativas tenham continuidade, que isso não é sinal de "envelhecimento da nossa democracia" nem motivo de frustração com o regime, como já escreveram. Muito ao contrário, é a vitalidade da democracia, que traz no próprio nome a participação necessária dos cidadãos. Mas é indispensável a prevenção para que as hordas de desordeiros e saqueadores não sigam na tendência de crescer, em número e em audácia criminal, como arrastões gigantes, que já prenunciam.
Só para exemplificar, se o fogo se dissemina na Prefeitura de São Paulo ou no Theatro Municipal, ambos com muitas pessoas no interior, ou na Assembleia fluminense, as consequências da tragédia não se limitariam às vítimas numerosas e às perdas materiais. E um novo assédio ao prédio do Congresso, se ocorrer, não se satisfará com o lado externo das cúpulas, implicando as próprias instituições.
Mas o perigo se faz, em grande parte, pela ineficiência das PMs. Engrandecida, nos episódios recentes, por tardanças e omissões mais do esquisitas. Diz o secretário da Segurança de São Paulo, Fernando Grella, que a sua PM agiu "na ocasião certa", quando do ataque dos delinquentes à prefeitura paulistana. Foram quase três horas entre o início da desordem e a chegada de socorro da PM, durante as quais os vídeos registraram, também para o secretário, a situação de guardas municipais refugiados no prédio, a quebradeira e o que foi feito do carro de transmissão da TV Record. Com uma tropa da PM em inútil prontidão.
No Rio foi o mesmo, durante a longa tentativa de incendiar a Assembleia, a invasão e destruição de uma dependência do edifício, o incêndio de carros e o vandalismo em prédios históricos. Com uma tropa da PM em inútil prontidão.
Aos governadores talvez não ocorra, ainda, que o seu prestígio, entre os muitos milhares que se fazem ouvir, não é tanto que os impeça de ir às ruas clamar por intervenção federal ou por impeachment, caso a violência das hordas fique sem controle.
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