ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Brasília, 1976
Sentia-me um personagem de Antonioni, caminhando à deriva naqueles espaços vazios e silenciosos. Uma tarde, na Esplanada dos Ministérios, olhei para o gigantesco céu que parecia querer me engolir e soltei um grito para saber se Deus me ouviria. Tudo continuou em silêncio absoluto.
À tarde trabalhava como repórter na sucursal do semanário "Movimento". Eram três saletas no edifício Márcia: uma da Redação, outra para reuniões com políticos e estudantes da oposição e a terceira destinada ao diretor da sucursal, Francisco Pinto, ex-deputado baiano que fora cassado e preso durante seis meses por causa de um discurso contra a visita do ditador chileno Augusto Pinochet ao país.
Com a sua barba hirsuta, a voz de monge budista e a inseparável piteira, Chico Pinto transpirava dignidade e alento.
Minha experiência prévia com textos culturais para várias publicações cariocas não ajudava muito na capital do poder. Era outro patamar, política "hardcore", um cara a cara diário com a ditadura.
De repente, tinha que ouvir o enfezado deputado Herbert Levy esbravejar na minha frente ("pro Movimento' eu não dou entrevista!") e o dissimulado senador Petrônio Portella alegar estar "afônico", o que o impediria de dar declarações.
Ou o cauteloso deputado Francelino Pereira ler, diante do gravador, respostas escritas sem admitir nenhuma pergunta adicional, e o Zezinho Bonifácio, com humor negro, garantir que a Lei Falcão aprovada naquele ano (segundo a qual candidatos só poderiam divulgar um breve currículo na TV e no rádio) "é a lei mais democrática que existe".
Um dia, fui ao Ministério da Justiça em busca de dados para uma reportagem. Encaminhado à Divisão de Segurança e Informações, como era praxe, fui levado por um coronel em trajes civis a uma sala, onde pegou caneta e papel e começou a fazer perguntas: por que eu queria fazer a matéria, quem tinha pedido, quem era o editor, quem mais trabalhava na sucursal.
Respondi aparentando calma, mas preocupado com o livro que tinha na bolsa: "Conversations with Allende", de Régis Debray, que eu lia nas horas vagas. Se o coronel descobrisse, no mínimo o livro seria confiscado como literatura "subversiva". Por isso nem insisti quando ele negou as informações que eu desejava.
A reportagem, como muitas outras, recebeu um enorme X vermelho da censura, que funcionava no prédio da Polícia Federal. Ali era entregue toda sexta por um office-boy o pacote de matérias que a sede do jornal enviava de São Paulo.
Na parede da sucursal havia um desenho de um saco sendo roído por um rato. No saco estava escrito "matérias do Movimento" e, ao lado, "dr. Romão", com uma seta apontada para o rato.
No dia 6 de dezembro, morreu João Goulart. Seria evidentemente a matéria de capa, com várias fotos do ex-presidente derrubado no golpe militar de 1964. Mas o pacote voltou bastante roído pela censura: a maioria das reportagens sobre Jango tinha cortes, e todas as fotos foram vetadas.
Teodomiro Braga, chefe da sucursal, pediu-me para tentar conseguir com o censor a liberação de alguns textos e fotos. Fui então conhecer o "doutor" Hélio Romão, delegado da Polícia Federal na chefia da Divisão de Censura.
Expliquei-lhe a importância jornalística dos textos, que nenhuma delas infringia a Lei de Segurança Nacional, que o presidente estava morto, não representava mais nenhum perigo para o governo.
Inflexível, ele dizia simplesmente não e não. Por fim, falei das fotos do ex-presidente: eram imprescindíveis. Até que o "doutor" Romão liberou uma. Mas quando eu já me virava para sair, ele determinou, enérgico, quase gritando: "Mas na capa, não! Jango na capa, não!".
Ficou evidente que, mesmo depois de morto, o ex-presidente ainda era odiado (e temido) pelo regime militar. A edição saiu apenas com algumas opiniões de ex-correligionários e adversários, trechos de seus discursos e do livro "Introdução à Revolução de 1964", de Carlos Castello Branco. Sem foto.
Agora, com a exumação dos restos mortais de João Goulart para que se investiguem as circunstâncias de sua morte e com o lançamento do documentário "Dossiê Jango", de Paulo Henrique Fontenelle, seu fantasma continua a rondar a consciência nacional e a incomodar o sono dos detratores.
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