segunda-feira, 19 de novembro de 2012

ALCIONE ARAÚJO » A verdade das mentiras‏

"Os homens não se satisfazem na moldura de sua curta e única vida pessoal" 
ALCIONE ARAÚJO
Estado de Minas: 19/11/2012 
Leitores de crônica indagam: “Verdade? Aconteceu com você?”. Entendo, leram-na entre notícias do dia anterior – mas minhas crônicas aconteceram comigo ou com amigos confiáveis! Faço ficção em outros gêneros. Fazem mais perguntas. Não os convenci. Noto o mesmo em outros gêneros: dizem que peças, filmes, romances são bem urdidos, divertidos, mas sempre mentem. Que percepção mais confusa!

É verdade. Romances, peças e filmes mentem. E porque mentem revelam uma delicada verdade, que, para ser entendida, deve ser dita de forma oblíqua: os homens não se satisfazem na moldura de sua curta e única vida pessoal. Não estão contentes com seus destinos. Gostariam de ter uma vida diferente da que vivem, de ser mais, de ser vários. A mentira do romance, do palco e do filme oferece vidas inventadas para preencher as lacunas e insuficiências da vida real.

Ao ler o romance, ver o filme ou peça, assimilam-se as façanhas das personagens: vitórias, tristezas, medo, alegria, paixão, que são agregadas à vida curta e única. A identificação amplia a experiência de estar no mundo e agrega, pela emoção, vivências do que não se viveu, nem se vai viver. O leitor/espectador torna-se mais e muitos. Daí dizer-se que a arte possibilita a completude que não temos. 

Para Vargas Llosa, de quem roubei o título acima, não se escrevem romances para contar a vida, senão para transformá-la acrescentando-lhe algo. O romance conta uma história que a História não sabe nem pode contar. Em vez do suposto vício que a depreciaria, a mentira é a grande virtude que enobrece e dá sentido ao romance, à peça e ao filme. Só que essa mentira precisa ser apresentada de forma convincente, verdadeira, embora não seja real. Tramas e personagens são mentiras plausíveis e verossímeis, ajustadas à nossa fantasia. É a magia da arte! 

Se a condição para convencer fosse o aval de fato real, não haveria lugar para a invenção e a criação, e a arte literária finaria. Por mais que o autor tentasse escrever com obsessiva e escrupulosa fidelidade, não estaria reproduzindo fatos concretos e vidas reais, mas apenas reunindo letras e palavras sobre o papel. Ao serem escritos, os fatos sofrem transformação alquímica, passam a ser um texto, nada mais que texto. A verdade, ou a mentira, é o texto, não o fato nem a vida.

Escrevo sobre fatos reais, não pelo plausível e verossímil – e sim pela poesia ou a ideia que se oculta no cotidiano. Gosto de pinçá-las e trazê-las à luz desta janela! Mas a crônica dispensa o aval da realidade, pode ser obra de imaginação. Afinal, tudo se resume a um texto, onde se oculta a verdade das mentiras.

Com este texto sobre seu ofício, publicado em 9 de maio de 2011, o cronista Alcione Araújo dá adeus a seus leitores. Ele morreu na quinta-feira passada, em Belo Horizonte.

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