segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O PSDB pode ter uma utopia? - RENATO JANINE RIBEIRO

Tudo de bom nos últimos séculos nasceu como utopia

Valor Econômico - 19/11/2012


Daqui a menos de um mês, completará quinze anos o discurso mais ambicioso de Fernando Henrique Cardoso, em que ele disse que o mundo vivia "um novo Renascimento, um novo Humanismo". E que essa novidade, em vez de beneficiar só as elites, engendraria um cidadão globalizado, um cidadão do mundo. (Valeria a pena o Instituto FHC comemorar a data com um debate).

Dá então para dizer que o ex-presidente propôs uma utopia, mesmo sem usar esta palavra? O termo "utopia" nunca foi bem-visto nos círculos conservadores, para onde tem rumado o público do PSDB. E "utopia" em mesmo um sentido negativo, porque se ligou, sobretudo com o comunismo, a uma mudança imposta de cima para baixo. Um único princípio, a abolição da propriedade privada, serviu para mudar todos os aspectos da vida humana, inclusive a mais pessoal. Mesmo com boas intenções, o resultado foi lastimável. Daí que, hoje, muitos receiem mudanças radicais, planejadas, efetuadas a frio.

Mas há outro lado na palavra "utopia": quase tudo o que surgiu de bom nos dois últimos séculos foi, antes, concebido como utópico. Ou que nome dar aos malucos que defendiam a igualdade dos seres humanos, quando era dogma a desigualdade entre plebeus e nobres? Só um louco proporia para as mulheres os mesmos direitos dos homens; por defender isso, Olympe de Gouges foi guilhotinada. Ou alguém sensato acharia que negros, índios e não-ocidentais poderiam se igualar aos brancos? Não. Tudo o que é igualdade soava a delírio - a "utopia". O quase centenário Albert Hirschman, amigo por sinal de FHC, dedica um belo livro à "retórica reacionária", segundo a qual toda proposta de melhorar o mundo, na verdade, o piora. Pois é: se déssemos ouvidos aos anti-utopistas, nada faríamos para melhorar as coisas, porque todo esforço consciente nessa direção só as piora; só que, assim, não teria acabado a escravidão nem o colonialismo.

Em suma, nem toda utopia resulta em coisa que preste. Mas nada surge de bom que não tenha passado pela utopia.

É claro que o Renascimento - o dos séculos XV e XVI - não foi só a utopia. Foi também Maquiavel, com o advento da ciência política, o filósofo cujo "Príncipe" o ex-presidente prefaciou há dois anos. Mas o espírito do discurso de FHC está na ideia, não de um conhecimento cético e sem ilusões sobre o que o homem faz (a descoberta de Maquiavel), mas na proposta de um mundo justo e feliz (a invenção de Thomas More). Daí, a pergunta: podemos ter uma utopia tucana? Pode um partido que almeja mobilizar a sociedade, empolgar o poder, mudar o País, conseguir isso sem algum sonho, alguma utopia?

Em 2010, quando Fernando Henrique lançou seu livro "Relembrando o que Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios Globais", participei do debate de lançamento. Discutimos como um presidente "acidental", para usar a expressão dele próprio, conseguiu firmar sua autoridade e ser um dos chefes de Estado mais bem sucedidos de nossa história. Quando ele foi eleito, Conceição Tavares disse que certamente seria "enrolado" por Antonio Carlos Magalhães. Pois é, aconteceu o contrário... Agraciado pelo dedaço de Itamar Franco, tendo a seu favor basicamente a retórica, a persuasão, a capacidade de falar e articular, Fernando Henrique conseguiu alçar-se a um nível inigualado por seus companheiros de partido. Da fortuna, ou da sorte, fez virtude, ou competência pessoal. Mas, nos seus herdeiros de partido, sinto falta do elemento renascentista, da utopia, do projeto. Nesse debate de 2010, depois de se discutir o futuro da sociedade, um ex-colaborador seu que estava na plateia perguntou se não deveríamos rever os benefícios da Previdência para caberem no respectivo orçamento. Fiquei espantado, não porque a pergunta fosse errada, mas porque aparentemente o ex-ministro não tinha noção do que são fins, o que são meios. Os fins estão no projeto de sociedade que tenhamos. Os meios são as contas para chegar lá. Ele dava mais importância às contas.

O que pode estar na utopia tucana? Não é fortuito que Fernando e Ruth Cardoso fossem tão próximos de Manuel Castells, que teorizou os potenciais de conhecimento e transformação social da Internet. Não é fortuito que, nos últimos anos, revoluções tenham sido potencializadas pelas redes sociais. A difusão de conhecimento pela Web e, mais que isso, a produção de conhecimento novo se tornaram fatores essenciais no mundo que desponta. A globalização de que FHC fala é, mais que dos mercados, a da rede. Aí entra a educação, assunto sobre o qual pensadores tucanos ou próximos do PSDB se destacam no País. Considero que a prática do governo petista na educação - mais precisamente, a ênfase nos indicadores de avaliação - está mais perto da teoria tucana do que daquilo que dizem os próprios petistas. Há um vasto manancial de ideias à espera de uma política. Em seu favor, têm os educadores tucanos um senso da realidade e da relação custo-benefício que nem sempre vemos no PT; por exemplo, enfatizam o papel do ensino técnico e, sobretudo, pensam em como ter o maior rendimento possível pelo dinheiro investido. Embora qualquer governo, inclusive os petistas, tenha de procurar o máximo rendimento, o fato é que a doutrina petista não aprofunda essa direção. Resumindo, na educação, a prática do PT é melhor que a teoria dele (ou do que a prática tucana), enquanto a teoria peessedebista é superior à prática do seu partido. Quem souber desatar esse nó tem forte chance de ganhar a parada. E, como a educação é hoje a maior chave para a emancipação social, saber tratar dela pode ser um trunfo. Uma utopia, em suma, realizável, ainda que difícil.

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