sábado, 24 de novembro de 2012

Caminho sem volta - André di Bernardi Batista Mendes‏

O escritor moçambicano Mia Couto denuncia em A confissão da leoa a rotina de personagens massacrados por opressões políticas e sexuais 

André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 24/11/2012 
Mia Couto compreende o que diz os escuros da Lua, sabe das árvores, das dores – e das alegrias – de um continente. Mia já foi bicho, Mia já foi mulher. Não se sabe como, nem por que, mas não são poucos que ainda acreditam que o poeta moçambicano usa saias. Segundo ele, ainda é comum o escritor chegar a diversos países, como palestrante, como convidado de honra etc., e ser recebido com presentes e mimos femininos. Mas isso são apenas detalhes. Mia Couto é uma espécie de guardião dos segredos de sua terra, de sua África. É fascinante a força, o vigor de sua poesia, a beleza de suas histórias, carregadas de mitos, lendas e, sobretudo, uma intensa vontade de vida. A Companhia das Letras, que vem publicando sua obra, acaba de lançar A confissão da leoa, onde retrata o drama das mulheres rurais de Moçambique. 

O escritor transformou, com talento e sensibilidade, a experiência real que teve durante uma expedição para estudos ambientais em romance. Ao viajar para o Norte de Moçambique, em 2008, Mia presenciou ataques de leões a pessoas, principalmente mulheres. No livro, na aldeia de Kulumani, algumas feras começam a sair da savana para atacar as pessoas, provocando caos e, claro, muito pânico. Mia, diante dos fatos, aproveita para denunciar a submissão e o sofrimento de tantas mulheres. Mia, apesar de se pautar pela dura realidade, não procura verossimilhança. O universo mítico, o poder da fantasia transforma-se numa arma bem mais letal e poderosa para alcançar o coração dos homens, para abrandar a fúria das feras. 

Causas e efeitos, certo e errado. O real é fantasia e vice-versa. Os ataques das feras servem de ponto de partida para o escritor montar o seu quebra-cabeça num ambiente estranho, cheio de dor e névoa, onde os fatos, onde as pessoas "de forma permanente sugeriam que os verdadeiros culpados eram habitantes do mundo invisível, onde a espingarda e a bala perdem toda a eficácia".

Mia Couto busca, no tempo presente, no mundo dos homens, como também nas lendas, nos mitos, um sem por que de sonhos, mesmo sem ressonâncias, mesmo diante do grande medo e da injustiça. Ele escreve para resgatar um tempo em que "falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua". É possível este raro impossível, pelo menos através da literatura: o rosto dos homens pode vencer a tristeza, mesmo sabendo que "tudo que é vivo está treinado para morder".

No livro, depois dos ataques dos leões, um experiente caçador, Arcanjo Baleiro, é enviado à região para contornar a situação. Ao chegar, ele se depara com um mundo bem mais complexo e ameaçador. Com ele chega também o escritor Gustavo Regalo, personagem inspirado no próprio Mia Couto. O livro é narrado em primeira pessoa por dois personagens, em capítulos alternados, o caçador e Mariamar, uma moça da aldeia cuja irmã, Silência, foi vítima de um dos leões. 

É sempre instável e perigosa a vida na África. Dizer África é lembrar, continuamente, da palavra respeito. Pensar África é dizer continente, diversidade, medo, distância, berço e novelo. Palavras são cardos e correntes. Com jeito e muito cuidado, Mia Couto insiste e permanece íntimo das coisas simples. Ele escreve com a dignidade (e com a vitalidade) das coisas que, continuamente, ainda se movimentam. Mia escreve com uma certa competência que só os poetas, que só as crianças alcançam, para dar voz a personagens sujos e inadequados, pessoas que a todo momento fazem de conta que "são de outros lugares, cheios de terra e céu". Mia escreve sobre paixões não correspondidas, estrelas que se apagam, num sopro. "Como há espaço, dentro de nós, para enterrarmos as nossas pequenas mortes", diz, numa bela passagem do livro, o caçador Arcanjo Baleiro. Qualquer pedra e todo coração, dos bichos e dos homens, guardam segredos inconfessáveis. 

Nomes e pessoas Palavra é espada e jardim. Cabe ressaltar a força dos nomes escolhidos por Mia Couto. Arcanjo, que remete a absolvição, a voo, a céu, a respiro; Regalo, que significa prazer, descanso, repouso (este seria o objetivo da arte, da literatura?); Silência, que indica mutismo, imobilidade; Mariamar, palavra, signo que exige vento e amplidão, Mariamar, mulher e oceano, aquela que ama, em todos os sentidos. 

O romancista monta um enredo repleto de aventuras, revoltas, indignações latentes e expostas. Fervilham histórias de incesto, assassinatos, traições e opressões das mais variadas. O mundo (a África) carrega várias fraturas expostas. Mia, com seu encanto, utiliza a própria linguagem para recriar, para transfigurar, para ver nascer o bem. É deslumbrante acompanhar esta batalha inglória, repleta e cheia de mortos e vencidos. 

Mia Couto, autor de clássicos como Terra sonâmbula (considerado um dos 10 melhores livros africanos do século 20), A varanda do Frangipani, Antes de nascer o mundo, O outro pé da sereia, entre muitos outros, escreve, com lágrimas, de olho no coração e no espírito daqueles que a vida jogou para as margens de todo e qualquer processo político e social. Entretanto, existe uma África que pulsa com um coração insistentemente belo. A liturgia, a força deste pedaço imenso de mistério abrange um homem inteiro. 

Como um feiticeiro contemporâneo, o escritor desvenda o que existe de oculto no seio de sua terra para, talvez, pela força da palavra, modificar uma rotina de desmandos e sofrimentos absurdos. O problema não está nos bichos. Mia escarnece, com sua raiva pronta, e aponta, com sutileza, para a fome e para a lógica furiosa, cega e burra dos leões políticos do mundo livre. 

Perto de um estilo não menos livre, solto, sem amarras, o que torna a leitura de A confissão da leoa ainda mais agradável, Mia mostra maturidade e um pleno domínio sobre as palavras, sobre o verbo que, diante das suas mãos, transformam-se em pomba e pavio. A poesia, um modo poético de enxergar a realidade, auxilia de forma contundente no andamento da história do livro. A poesia é, para ele, um verdadeiro caminho sem volta. Um dos principais escritores africanos da atualidade, António Emílio Leite Couto nasceu em 5 de julho de 1955, em Beira, Moçambique.

A CONFISSÃO DA LEOA
• De Mia Couto
• Editora Companhia das Letras
• 254 páginas, R$ 39,50

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