Daniel Camargos
Estado de Minas: 24/11/2012
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo é o segundo livro de David Foster Wallace lançado no país. Traduzida pelos escritores Daniel Galera e Daniel Pellizari a, obra é uma coletânea de ensaios realizados por Wallace para diferentes publicações. Ensaios, talvez, não seja a melhor definição. A maior parte do livro é preenchida por três reportagens para revistas classudas, que excedem as amarras do texto jornalístico e fazem digressões sobre o comportamento humano, dilemas éticos e uma postura deliciosamente misantropa.
Wallace escreve dezenas de páginas sobre a Feira de Agricultura de Illinois, seu estado natal. Outro texto a partir das experiências vivenciadas em um cruzeiro marítimo no Caribe e a terceira sobre um encontro de gastronomia na capital mundial da lagosta. Além das três reportagens/ensaios, o livro tem mais três textos, com menor fôlego, mas com a mesma pegada. Um perfil do tenista Roger Federer, uma palestra sobre o humor na leitura de Kafka e um discurso de paraninfo no Kenyon College, em 2005.
O discurso, aliás, é o texto mais conhecido de Wallace. Virou uma espécie de viral, sendo compartilhado nas redes sociais e já publicado no Brasil pela revista Piauí, em outubro de 2008. O amigo e, de certa maneira, rival literário de Wallace, Jonathan Franzen, concedeu uma entrevista ao jornal espanhol El País, na semana passada, e disse que o texto, chamado “Isto é água”, é o pior publicado por Wallace. “Ele (Wallace) era muito mais obscuro e menos simplista. Sempre enfrentou seus demônios”, disse Franzen, em uma crítica ao jeitão de autoajuda para recém-formados do discurso.
O melhor do livro, entretanto, são as notas de rodapé. Nelas Wallace tenta justificar suas considerações sobre o comportamento humano, explicando aquilo que pode ser considerado ironia ou até mesmo maldade com argumentos que se tornam insofismáveis. Um bom exemplo é quando Wallace explica sua tremenda antipatia por aquilo que ele chama de “sorriso profissional”: uma pandemia nacional no ramo da prestação de serviços, nas palavras dele.
“Você conhece esse sorriso – a árdua contração da fascia perioral com envolvimento zigomático incompleto –, o sorriso que não chega a envolver os olhos de quem sorri e que não significa nada além dos interesses daquele que sorri ao fingir que ele gosta da pessoa para quem sorri.” E segue assim, explicando em uma nota de rodapé que se alonga por quase uma página inteira o quão tacanho é o sorriso profissional encontrado em larga escala no Cruzeiro Nadir, em que Wallace passa uma semana.
Outro bom exemplo é a definição que Wallace faz do turista americano. “Parte do desespero generalizado que me aflige nesse Cruzeiro de Luxo é que, não importa o que eu faça, não tenho como fugir da minha americanidade essencial e subitamente incômoda. Esse desespero chega ao ápice quando atracamos e fico na balaustrada olhando para algo do qual estou condenado a fazer parte. Seja aqui em cima ou lá embaixo, sou um turista americano e por conseguinte sou ex officio grande, corpulento, vermelho, barulhento, grosseiro, condescendente, egocêntrico, mimado, preocupado com a aparência, envergonhado, desesperado e ganancioso: a única espécie conhecida de bovino carnívoro no mundo inteiro.”
O jornalismo norte-americano é notável pelas constantes criações que vão além da fórmula básica da notícia criada por eles mesmos, que incluií o lead – primeiro parágrafo respondendo às perguntas essenciais – e a pirâmide invertida, oráculo da clareza e objetividade. O new journalism, com textos consagrados no patamar da boa literatura, de Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese e cia, foi o primeiro a romper com sucesso as amarras da técnica padronizada. Depois, Hunter Thompson, criador do gonzo jornalismo, escreveu abastecido por toda sorte de bebidas e drogas, se tornando um personagem, por vezes bizarro, da notícia, mas inegavelmente com um estilo único e reconhecido.
Os textos jornalísticos de Wallace, com certeza, bebem dessas fontes, mas se manifestam de uma forma nova. O repórter/escritor é personagem. Seus dramas, dilemas, traumas e questões da complexa mente do narrador aparecem em todo momento. Além disso, a formação erudita é exposta em digressões complexas e que evitam – acima de tudo – uma análise rasa de qualquer fato.
Contratado pela revista Gourmet para escrever sobre o Festival da Lagosta do Maine – o maior do mundo –, Wallace faz uma reportagem/ensaio chamada “Pense na lagosta” e levanta a questão moral de cozinhar os bichos vivos. Um texto técnico, que envolveu pesquisa profunda e em nenhum momento passa pelo deslumbre típico dos frequentadores de festivais gastronômicos.
“Até onde percebo, minha principal maneira de lidar com esse conflito tem sido evitar pensar sobre assunto tão desagradável. Devo admitir que também me parece improvável que muitos leitores da Gourmet queiram pensar sobre isso ou ser questionados a respeito da moralidade de seus hábitos alimentares por uma revista mensal de gastronomia. Porém, como a pauta definida para este artigo é descrever como foi participar do FLM de 2003, e por conta disso passar vários dias em meio a uma grande massa de americanos comendo lagostas, e e por conta disso ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experiência de comprar e comer lagostas, calha que não existe uma maneira honesta de evitar certas questões morais.”
Romance e sexo
O primeiro livro de Wallace traduzido no Brasil é Breves entrevistas com homens hediondos. A obra-prima do autor, Infinte Jest (1996), está sendo traduzida por Caetano Galindo e, de acordo com a Companhia das Letras, deve ser lançada no segundo semestre do próximo ano. O tradutor tem uma coluna no blog da editora e escreve quinzenalmente sobre o processo de verter para o português uma das obras consideradas revolucionárias da literatura norte-americana.
Wallace morreu aos 46 anos, em 2008, ao se enforcar. Objeto de culto entre os norte-americanos, a obra de Wallace já rendeu vários livros analisando a prosa, principalmente de Infinit Jest. A última biografia e considerada a mais completa é Every Love story is a ghost story: a life of David Foster Wallace, de D.T. Max, somente em inglês. O livro busca as razões que levaram Wallace ao suicídio, provocado por uma depressão crônica.
Seu pai era professor de filosofia e Wallace seguiu carreira acadêmica, lecionando até o final da vida. Foi o melhor aluno da faculdade de artes liberais, em Massachusetts. Foi diagnosticado com “depressão atípica” e tomou por anos e anos um medicamento chamado Nardil. Era estudioso de filosofia e teoria matemática, mas se destacou na ficção. O sucesso o transformou em um escritor mulherengo, sem pudor de ir para a cama com suas fãs. Tinha um visual de rock star. Cabeludo, muitas vezes fotografado com uma bandana prendendo o cabelo, parecia uma versão literária do Axl Rose. Outra característica que o aproximava de uma figura do mainstream pop era seu apreço pelas drogas, em especial a maconha.
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo
. De David Foster Wallace, tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari
. Companhia das Letras, 312 páginas, R$ 44,50
Wallace escreve dezenas de páginas sobre a Feira de Agricultura de Illinois, seu estado natal. Outro texto a partir das experiências vivenciadas em um cruzeiro marítimo no Caribe e a terceira sobre um encontro de gastronomia na capital mundial da lagosta. Além das três reportagens/ensaios, o livro tem mais três textos, com menor fôlego, mas com a mesma pegada. Um perfil do tenista Roger Federer, uma palestra sobre o humor na leitura de Kafka e um discurso de paraninfo no Kenyon College, em 2005.
O discurso, aliás, é o texto mais conhecido de Wallace. Virou uma espécie de viral, sendo compartilhado nas redes sociais e já publicado no Brasil pela revista Piauí, em outubro de 2008. O amigo e, de certa maneira, rival literário de Wallace, Jonathan Franzen, concedeu uma entrevista ao jornal espanhol El País, na semana passada, e disse que o texto, chamado “Isto é água”, é o pior publicado por Wallace. “Ele (Wallace) era muito mais obscuro e menos simplista. Sempre enfrentou seus demônios”, disse Franzen, em uma crítica ao jeitão de autoajuda para recém-formados do discurso.
O melhor do livro, entretanto, são as notas de rodapé. Nelas Wallace tenta justificar suas considerações sobre o comportamento humano, explicando aquilo que pode ser considerado ironia ou até mesmo maldade com argumentos que se tornam insofismáveis. Um bom exemplo é quando Wallace explica sua tremenda antipatia por aquilo que ele chama de “sorriso profissional”: uma pandemia nacional no ramo da prestação de serviços, nas palavras dele.
“Você conhece esse sorriso – a árdua contração da fascia perioral com envolvimento zigomático incompleto –, o sorriso que não chega a envolver os olhos de quem sorri e que não significa nada além dos interesses daquele que sorri ao fingir que ele gosta da pessoa para quem sorri.” E segue assim, explicando em uma nota de rodapé que se alonga por quase uma página inteira o quão tacanho é o sorriso profissional encontrado em larga escala no Cruzeiro Nadir, em que Wallace passa uma semana.
Outro bom exemplo é a definição que Wallace faz do turista americano. “Parte do desespero generalizado que me aflige nesse Cruzeiro de Luxo é que, não importa o que eu faça, não tenho como fugir da minha americanidade essencial e subitamente incômoda. Esse desespero chega ao ápice quando atracamos e fico na balaustrada olhando para algo do qual estou condenado a fazer parte. Seja aqui em cima ou lá embaixo, sou um turista americano e por conseguinte sou ex officio grande, corpulento, vermelho, barulhento, grosseiro, condescendente, egocêntrico, mimado, preocupado com a aparência, envergonhado, desesperado e ganancioso: a única espécie conhecida de bovino carnívoro no mundo inteiro.”
O jornalismo norte-americano é notável pelas constantes criações que vão além da fórmula básica da notícia criada por eles mesmos, que incluií o lead – primeiro parágrafo respondendo às perguntas essenciais – e a pirâmide invertida, oráculo da clareza e objetividade. O new journalism, com textos consagrados no patamar da boa literatura, de Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese e cia, foi o primeiro a romper com sucesso as amarras da técnica padronizada. Depois, Hunter Thompson, criador do gonzo jornalismo, escreveu abastecido por toda sorte de bebidas e drogas, se tornando um personagem, por vezes bizarro, da notícia, mas inegavelmente com um estilo único e reconhecido.
Os textos jornalísticos de Wallace, com certeza, bebem dessas fontes, mas se manifestam de uma forma nova. O repórter/escritor é personagem. Seus dramas, dilemas, traumas e questões da complexa mente do narrador aparecem em todo momento. Além disso, a formação erudita é exposta em digressões complexas e que evitam – acima de tudo – uma análise rasa de qualquer fato.
Contratado pela revista Gourmet para escrever sobre o Festival da Lagosta do Maine – o maior do mundo –, Wallace faz uma reportagem/ensaio chamada “Pense na lagosta” e levanta a questão moral de cozinhar os bichos vivos. Um texto técnico, que envolveu pesquisa profunda e em nenhum momento passa pelo deslumbre típico dos frequentadores de festivais gastronômicos.
“Até onde percebo, minha principal maneira de lidar com esse conflito tem sido evitar pensar sobre assunto tão desagradável. Devo admitir que também me parece improvável que muitos leitores da Gourmet queiram pensar sobre isso ou ser questionados a respeito da moralidade de seus hábitos alimentares por uma revista mensal de gastronomia. Porém, como a pauta definida para este artigo é descrever como foi participar do FLM de 2003, e por conta disso passar vários dias em meio a uma grande massa de americanos comendo lagostas, e e por conta disso ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experiência de comprar e comer lagostas, calha que não existe uma maneira honesta de evitar certas questões morais.”
Romance e sexo
O primeiro livro de Wallace traduzido no Brasil é Breves entrevistas com homens hediondos. A obra-prima do autor, Infinte Jest (1996), está sendo traduzida por Caetano Galindo e, de acordo com a Companhia das Letras, deve ser lançada no segundo semestre do próximo ano. O tradutor tem uma coluna no blog da editora e escreve quinzenalmente sobre o processo de verter para o português uma das obras consideradas revolucionárias da literatura norte-americana.
Wallace morreu aos 46 anos, em 2008, ao se enforcar. Objeto de culto entre os norte-americanos, a obra de Wallace já rendeu vários livros analisando a prosa, principalmente de Infinit Jest. A última biografia e considerada a mais completa é Every Love story is a ghost story: a life of David Foster Wallace, de D.T. Max, somente em inglês. O livro busca as razões que levaram Wallace ao suicídio, provocado por uma depressão crônica.
Seu pai era professor de filosofia e Wallace seguiu carreira acadêmica, lecionando até o final da vida. Foi o melhor aluno da faculdade de artes liberais, em Massachusetts. Foi diagnosticado com “depressão atípica” e tomou por anos e anos um medicamento chamado Nardil. Era estudioso de filosofia e teoria matemática, mas se destacou na ficção. O sucesso o transformou em um escritor mulherengo, sem pudor de ir para a cama com suas fãs. Tinha um visual de rock star. Cabeludo, muitas vezes fotografado com uma bandana prendendo o cabelo, parecia uma versão literária do Axl Rose. Outra característica que o aproximava de uma figura do mainstream pop era seu apreço pelas drogas, em especial a maconha.
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo
. De David Foster Wallace, tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari
. Companhia das Letras, 312 páginas, R$ 44,50
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