Zero Hora - 24/11/2012
A certa altura do documentário Caro Francis (2008), a viúva Sonia
Nolasco lê uma carta em que Paulo Francis (1930 – 1997) narra a um amigo
os últimos dias da gata Alzira e seu desconsolo diante da morte
iminente do bichinho. É um trecho emocionante do filme, mas é inevitável
sentir algum desconforto quando nos damos conta de que o próprio
jornalista, se consultado, provavelmente não teria autorizado uma
exposição tão escancarada da sua intimidade.
Podemos imaginar Paulo Francis desafiando inimigos, ridicularizando
adversários, ou mesmo saindo no tapa com algum desafeto depois de um ou
dois uísques a mais, mas dificilmente chorando – e menos ainda pela
morte de um gato. A sua revelia, desfez-se em um par de minutos de um
filme boa parte da imagem cínica e durona cultivada ao longo de 40 anos
de jornalismo macho alfa.
A cantora americana Fiona Apple, 35 anos, situa-se mais ou menos no
extremo oposto no espectro da sensibilidade à flor da pele. Dona de
olhos tristes e canções mais melancólicas ainda, Fiona transformou a
própria fragilidade na matéria viva que recheia a maior parte das letras
que compõe.
Como muitos artistas que surgiram a partir dos anos 90, a cantora
confessa inseguranças e desajustes íntimos com a mesma desenvoltura com
que um Hemingway (ou um Paulo Francis...) se vangloriaria das grandes
conquistas. Sem medo de ser infeliz, a cantora é um retrato bastante
emblemático da sensibilidade artística de boa parte da sua geração.
Não chega a ser surpreendente, portanto, que Fiona Apple tenha
decidido cancelar sua turnê na América Latina (Porto Alegre, inclusive)
para ficar ao lado da cachorra Janet naqueles que podem ser seus últimos
meses de vida. Escrita à mão e postada em uma rede social, a carta
comove até mesmo aqueles que nunca tiveram um cachorro (como eu) ou
pertencem àquela parcela da humanidade que se identifica mais com a
independência felina do que com a fidelidade irrevogável dos cães
(idem).
Isso porque a justificativa de Fiona para o cancelamento da turnê
acabou se tornando menos um testemunho, como tantos outros, a respeito
da amizade por um bicho de estimação do que um tocante depoimento sobre a
proximidade da morte de alguém querido e a forma mais apropriada de
viver esse momento.
“Não serei aquela pessoa que coloca a carreira acima do amor e da
amizade. Vou ficar em casa, ao lado da minha mais antiga e querida
amiga, fazendo com que ela se sinta confortável, confortada, segura,
importante”, diz Fiona na longa carta em que conta como encontrou Janet
em um parque, 13 anos antes, machucada e abandonada, e como as duas
tornaram-se inseparáveis nos anos seguintes.
Muitos fãs devem ter achado esquisito cancelar uma turnê por causa
de um cachorro, muito estranho até mesmo para a excêntrica Fiona. Mas
intimamente, amantes de cachorro ou não, todos sabemos que ela fez a
coisa certa. Diante de um afeto que se vai, não existem fortes nem
fracos, cínicos ou frágeis, mas apenas nossa precária e atônita
humanidade – e o tanto de amor que conseguimos aprender a dividir.
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