Galo de briga
Em novo disco, "Abraçaço", Caetano Veloso ressalta teor agressivo da bossa nova
O disco encerra a trilogia iniciada com "Cê" (2006) e "Zii & Zie" (2009), o projeto roqueiro que levou o baiano para os braços do público jovem, que já (ou só?) cultuava o clássico "Transa" (1972).
A pancadaria dá o tom desde a primeira faixa, "A Bossa Nova é Foda", que começa comparando João Gilberto, "o bruxo de Juazeiro", a Machado de Assis, "o bruxo do Cosme Velho", e termina exaltando Vitor Belfort, Anderson Silva e outros "minotauros" que não caberiam no Rio mítico de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, também citados na letra.
Como foi possível juntar antípodas como João e Anderson na mesma canção?
"Cara, foi muito rápido, veio na minha cabeça porque o João Gilberto gosta de luta", disse Caetano à Folha, num hotel em São Paulo.
Fã de Mike Tyson, João "seguramente assiste" às lutas de MMA: "Ele era louco por boxe. Caracterizou o estilo dele, de ataque dos acordes e de escolha das divisões, como um golpe de caratê, quando voltou dos EUA, numa entrevista ao Tárik de Souza".
O paralelo não para aí. "O MMA foi uma criação muito brasileira, é uma mistura de tipos de luta que nasceu com os Gracie [mestres de jiu-jítsu] em Belém do Pará."
"Tem um desejo em toda a canção de fazer um retrato da bossa nova como gesto histórico e estético agressivo. Não o clichê da coisa doce e suave. Leio muito uns jornalistas americanos, ingleses, que falam como se a bossa nova fosse um negócio mole, doce. Eles estão errados."
MULHERES
Não sobra só para os jornalistas gringos: "Eu gosto de brigar com mulher", explica o compositor, ao comentar o "Funk Melódico", que atualiza o Noel Rosa de "Mulher Indigesta" (1932), a tal que "merece um tijolo na testa".
"O tijolo é gritar:/Você me exasperou/Que você e exasperou/ você me exasperou/ você me exasperou", desabafa. Além de Noel, a tijolada parodia o Vinicius de "Medo de Amar" ao dizer que "o ciúme é o estrume do amor".
Marighella inspira canção de protesto
Guerrilheiro morto em 1969 é biografado em tons épicos em rap de oito minutos que evoca o "fim da canção"
Nos anos 60, guerrilha armada pediu "apoio logístico" a Caetano Veloso, que foi preso e exilado logo depois
Patrícia stavis/Folhapress | ||
Caetano posa para foto anteontem em SP |
"Parece canção francesa sobre política, tem muito da tradicional canção de protesto, essa longura, esse tom narrativo e explicativo, embora seja mais complexa do que isso", diz o compositor na entrevista à Folha.
A relação entre rap e canção de protesto traz para o disco a discussão sobre "o fim da canção" iniciada por Chico Buarque em entrevista à Folha, em 2006: "O Chico e o José Ramos Tinhorão coincidiram em dizer que o rap era a verdadeira canção de protesto, porque era dita por eles mesmos [as classes baixas]."
Caetano não chegou a conhecer Marighella, mas teve contato indireto com ele por meio de uma colega, Lourdinha, que militou com Marighella e foi presa.
"Ela causou uma impressão forte no [delegado do DOPS Sérgio] Fleury, que era o torturador. Ele se refere a ela como "caso mais impressionante de resistência à tortura", lembra ele.
Lourdinha pediu a Caetano que desse "apoio logístico à guerrilha de Marighella". "Eu fiquei mais ou menos inclinado a talvez fazer isso, se me fosse possível, se soubesse como, porque eu o admirava, mas eu temia, possivelmente não chegaria a fazer."
"Fui preso pouco tempo depois. Só se sabe disso hoje, na época só sabíamos disso a Lourdinha e eu."
A letra narra o episódio em que mandou um recado do exílio para o Brasil, quando soube da morte do guerrilheiro numa emboscada armada por Fleury, em 1969.
Ele e Gilberto Gil apareceram na capa de uma revista, dizendo "nós estamos mortos, ele está mais vivo do que nós". Na mesma época, enviou ao jornal "Pasquim" um texto sobre Marighella.
Caetano diz que, na época, ninguém no Brasil entendeu que a tristeza que expressava no texto não era apenas a tristeza do exílio, mas uma referência à morte de Marighella.
Talvez porque a tristeza seja uma constante em sua vida e obra, especialmente nos últimos anos. "Estou triste", a terceira faixa, soa como a mais triste de todas as canções melancólicas da trilogia.
"É mais um negócio desse período da minha vida, mas eu conheço tristeza desde sempre", disse ele, sobre a letra que diz que "O lugar mais frio do Rio/ é o meu quarto".
(PAULO WERNECK)
CRÍTICA ROCK
Bom fim da trilogia "Cê" não esconde cansaço da parceria com banda jovem
RODRIGO LEVINOEDITOR-ASSISTENTE DA “ILUSTRADA”Muito se fala do quanto a banda Cê renovou musicalmente a carreira de Caetano Veloso. Possível ver de outra forma: Caetano lançando mão de três jovens músicos, de influências igualmente frescas e diversas, para soar renovado - ele o grão-senhor desse processo.A banda só fez de Caetano ainda mais Caetano: provocador, viçoso, irônico, confessional, compositor de letras a talhe.
"Abraçaço", seu 49º disco, é o terceiro e último do que ele já chamou de "transambas" e "transrocks", série aberta em "Cê" e "Zii e Zie", um marco na discografia do cantor. E é, dos três, o mais falho (longe de ser ruim).
Abre com uma porrada: "A Bossa Nova é Foda". Em pouco mais de 30 versos, ele refunda o país a partir de João Gilberto, "o bruxo de Juazeiro", cita Bob Dylan e faz ponte entre a bossa nova e os lutadores de MMA, expoentes globais de um país que cresce aos trancos.
Segue firme por "Um Abraçaço", de letra delicada, envolta numa linha de baixo impregnante e solo sujo de guitarra. É uma das pepitas do repertório, como "Estou Triste". Aliás, não é de memória recente uma composição dele tão doída como esta. O ouvinte se vê puxado para o "lugar mais frio do Rio", o seu quarto.
Adiante, "Império da Lei", um saboroso afoxé-rock-maracatu que tem guitarra com pezinho no carimbó e versos econômicos. Trágica no tema, a morte, e graciosa na forma.
"Quero Ser Justo" é para se juntar a "Deusa Urbana" na recente coleção de canções românticas e autorreferentes.
A partir daí, é quando o disco fraqueja. A elegia a Carlos Mariguella ("Um Comunista") é longa e melodicamente restrita, embora politicamente relevante. "Vinco" e "Quando o Galo Cantou" não se acham entre "Funk Melódico" e "Parabéns". "Gayana", de Rogério Duarte, é bonita e anódina.
Quer dizer, é na primeira metade que está o ouro de "Abraçaço", um disco que flagra o esgotamento sonoro da parceria entre o baiano e os cariocas da banda, a um passo da repetição exaustiva.
O fim da trilogia força a pergunta: O que vem após essa fase tão vigorosa? Que Deus o guarde dos excessos orquestrais de Jaques Morelenbaum, como em parte dos seus discos dos anos 1990.
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