João Paulo
Estado de Minas: 08/12/2012
Não há imagem mais limpa, sobretudo para quem vive nos trópicos, do que um campo de neve, imaculadamente branco. O romancista belga George Simenon, em uma de suas melhores novelas, narra uma história de violência juvenil que se passa numa aldeia durante o inverno. O nome do livro, A neve estava suja, é um achado poético: por trás da brancura se revela uma sujeira quase invisível, mas que é pegajosa e daninha. Não há nada mais sujo que a neve maculada de sangue.
Quando o jornalista sueco Stieg Larsson (1954-2004) morreu, deixando três grossos volumes de sua Trilogia Millennium, o que se revelou ao mundo foi algo como uma grande poça de sangue na neve. A imagem da Suécia, quase sempre vista como uma espécie de paraíso de civilização e justiça social, não combinava em nada com o cenário de tramas que expunham crimes, violências contra mulher, homofobia, ódio racial e movimentos neonazistas, que pululam nos romances policiais de Stieg Larsson.
O susto foi ainda maior à medida que a vida do escritor foi sendo conhecida aos poucos. Larsson era um jornalista célebre em seu país por revelar tramas da extrema direita, grupos neofascistas e ações criminosas contra estrangeiros, negros e judeus. A rica e justa Suécia vivia um refluxo da social-democracia que a notabilizou, com emergência de um conservadorismo antidemocrático de múltiplas faces, que viceja até mesmo nas bandas de rock “branco”, que funcionam como caixa de grupos terroristas.
A trajetória do jornalista e romancista é reconstituída na biografia Stieg Larsson – A verdadeira história do criador da Trilogia Millennium, de autoria de Jan-Erik Petterson, jornalista e editor, responsável pela publicação do primeiro livro de Larsson sobre o grupo de extrema direita Democratas Suecos, lançado em 2001.
Para quem espera uma biografia recheada de pesquisas sobre a infância do autor, cheia de intimidades sexuais e histórias curiosas (afinal, morrer aos 50 anos, sem conhecer o sucesso de seus romances em todo o mundo, ainda por cima cheio de dívidas, é uma história e tanto), vai se deparar com outro tipo de biografia. O que interessa a Jan-Erik é o papel público de Stieg Larsson. Mesmo seus romances, com nítidos paralelismos em relação à vida do criador, são vistos muito mais como documentos políticos do que psicológicos.
O que parece ser um contrassenso, frente ao frenesi de fofocas que tomou conta das biografias, se torna o grande atrativo do livro. O leitor fica conhecendo, a partir da vida de Stieg Larsson, uma Suécia bastante diferente, com problemas políticos, econômicos e comportamentais muito singulares, mas nem por isso distantes de nós. Além disso, recupera a trajetória digna e corajosa de seu personagem num terreno igualmente nivelado por baixo na contemporaneidade: o jornalismo.
A biografia de Stieg Larsson não é um capítulo da saga de vencedores, mas dos lutadores.
Sucesso e fracasso A Trilogia Millenniumm, com seus milhões de livros vendidos em todo o mundo e duas versões para o cinema, deu ao século 21 uma dupla de heróis pouco comuns, o jornalista Mikael Blomkvist e a jovem hacker Lisbeth Salander. Eles não formam um casal, mas uma dupla que se junta em função de suas carências. Blomkvist, diretor da revista Millennium, dedicada a investigar ações da direita sueca, e Lisbeth, uma assustada punk perseguida por fantasmas reais e imaginários que aprendeu a se defender do mundo real invadindo o universo virtual, acabam metidos em tramas que embaralham problemas que afligem os dois ao mesmo tempo: as mentiras que sustentam a sociedade em que vivem.
Com esses ingredientes, Larsson mesclou literatura policial, suspense, psicologia e política para criar sua saga. Quando morreu de ataque cardíaco, aos 50 anos, passava por apertos financeiros, era perseguido e ameaçado e trabalhava como um condenado para dar conta de seus projetos, o maior deles a revista Expo. Jan-Erik reconstrói a vida de seu biografado não para explicar o homem, mas para criar um contexto verossímil para sua trajetória. Por isso, a biografia por vezes se parece mais história social que qualquer outra coisa.
O livro é dividido em três longos capítulos. No primeiro, “Ativista”, o biógrafo fala da juventude de Stieg, de sua família (os pais eram de esquerda e ligados a causas sociais), do impacto da Guerra do Vietnã em sua vida, dos sonhos do maio de 1968, das viagens pela Europa, do fracasso em entrar para a faculdade de jornalismo e do emprego em uma agência de notícias, na qual trabalhava compondo ilustrações e mapas. O jovem Stieg era filho de um lar de classe média, o pai complementava o trabalho como operário trabalhando como porteiro de cinema e os sonhos revolucionários faziam parte do dia a dia do rapaz, que saiu de casa aos 16 anos, com a ajuda dos pais.
Quando o jornalista sueco Stieg Larsson (1954-2004) morreu, deixando três grossos volumes de sua Trilogia Millennium, o que se revelou ao mundo foi algo como uma grande poça de sangue na neve. A imagem da Suécia, quase sempre vista como uma espécie de paraíso de civilização e justiça social, não combinava em nada com o cenário de tramas que expunham crimes, violências contra mulher, homofobia, ódio racial e movimentos neonazistas, que pululam nos romances policiais de Stieg Larsson.
O susto foi ainda maior à medida que a vida do escritor foi sendo conhecida aos poucos. Larsson era um jornalista célebre em seu país por revelar tramas da extrema direita, grupos neofascistas e ações criminosas contra estrangeiros, negros e judeus. A rica e justa Suécia vivia um refluxo da social-democracia que a notabilizou, com emergência de um conservadorismo antidemocrático de múltiplas faces, que viceja até mesmo nas bandas de rock “branco”, que funcionam como caixa de grupos terroristas.
A trajetória do jornalista e romancista é reconstituída na biografia Stieg Larsson – A verdadeira história do criador da Trilogia Millennium, de autoria de Jan-Erik Petterson, jornalista e editor, responsável pela publicação do primeiro livro de Larsson sobre o grupo de extrema direita Democratas Suecos, lançado em 2001.
Para quem espera uma biografia recheada de pesquisas sobre a infância do autor, cheia de intimidades sexuais e histórias curiosas (afinal, morrer aos 50 anos, sem conhecer o sucesso de seus romances em todo o mundo, ainda por cima cheio de dívidas, é uma história e tanto), vai se deparar com outro tipo de biografia. O que interessa a Jan-Erik é o papel público de Stieg Larsson. Mesmo seus romances, com nítidos paralelismos em relação à vida do criador, são vistos muito mais como documentos políticos do que psicológicos.
O que parece ser um contrassenso, frente ao frenesi de fofocas que tomou conta das biografias, se torna o grande atrativo do livro. O leitor fica conhecendo, a partir da vida de Stieg Larsson, uma Suécia bastante diferente, com problemas políticos, econômicos e comportamentais muito singulares, mas nem por isso distantes de nós. Além disso, recupera a trajetória digna e corajosa de seu personagem num terreno igualmente nivelado por baixo na contemporaneidade: o jornalismo.
A biografia de Stieg Larsson não é um capítulo da saga de vencedores, mas dos lutadores.
Sucesso e fracasso A Trilogia Millenniumm, com seus milhões de livros vendidos em todo o mundo e duas versões para o cinema, deu ao século 21 uma dupla de heróis pouco comuns, o jornalista Mikael Blomkvist e a jovem hacker Lisbeth Salander. Eles não formam um casal, mas uma dupla que se junta em função de suas carências. Blomkvist, diretor da revista Millennium, dedicada a investigar ações da direita sueca, e Lisbeth, uma assustada punk perseguida por fantasmas reais e imaginários que aprendeu a se defender do mundo real invadindo o universo virtual, acabam metidos em tramas que embaralham problemas que afligem os dois ao mesmo tempo: as mentiras que sustentam a sociedade em que vivem.
Com esses ingredientes, Larsson mesclou literatura policial, suspense, psicologia e política para criar sua saga. Quando morreu de ataque cardíaco, aos 50 anos, passava por apertos financeiros, era perseguido e ameaçado e trabalhava como um condenado para dar conta de seus projetos, o maior deles a revista Expo. Jan-Erik reconstrói a vida de seu biografado não para explicar o homem, mas para criar um contexto verossímil para sua trajetória. Por isso, a biografia por vezes se parece mais história social que qualquer outra coisa.
O livro é dividido em três longos capítulos. No primeiro, “Ativista”, o biógrafo fala da juventude de Stieg, de sua família (os pais eram de esquerda e ligados a causas sociais), do impacto da Guerra do Vietnã em sua vida, dos sonhos do maio de 1968, das viagens pela Europa, do fracasso em entrar para a faculdade de jornalismo e do emprego em uma agência de notícias, na qual trabalhava compondo ilustrações e mapas. O jovem Stieg era filho de um lar de classe média, o pai complementava o trabalho como operário trabalhando como porteiro de cinema e os sonhos revolucionários faziam parte do dia a dia do rapaz, que saiu de casa aos 16 anos, com a ajuda dos pais.
O segundo capítulo, “Cartógrafo”, mergulha no mundo da extrema direita sueca. Já trabalhando para publicações independentes, Stieg Larsson se torna um investigador determinado das ações racistas e conservadoras de toda ordem. Ainda jovem, ele se torna um dos grandes conhecedores das redes antidemocráticas da Suécia, em suas mais variadas manifestações. O resultado seria publicado em forma de artigos e ensaios, o que destacaria o talento de Stieg para a pesquisa e o trabalho obstinado. Jan-Erik recheia a biografia de informações relevantes sobre a política e economia de seu país, além de contextualizar os acontecimentos e envolvimentos de Stieg Larsson com as causas mais variadas, não apenas na Suécia. Ao acompanhar a vida do jornalista, o leitor ganha uma história dos subterrâneos da extrema direita europeia.
O terceiro capítulo, “Escritor de romances policiais”, se aproxima mais do leitor comum, interessado nos segredos de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist. Mais uma vez, o autor da biografia parece frustrar o fã da saga de Larsson. Em vez de falar do que todo mundo sabe (até mesmo acerca da rumorosa disputa pelos direitos do legado do romancista), ele apresenta uma sucinta história da literatura policial na Suécia, que vem ganhando, depois de Stieg Larsson e Henning Menkell, um lugar destacado no mercado literário mundial. Conhecer a literatura que vem do frio é a recompensa para o leitor.
Stieg Larsson não se achava um herói. Fazia seu trabalho. Quando precisou de grana, escreveu num jorro centenas de páginas e criou dois personagens que ficaram em seu lugar. Sua obra não é perfeita, mas é impressionante em termos de maturidade, estrutura e fôlego narrativo. A biografia de seu amigo Jan-Erik Pettersson honrou essas escolhas. Preservou o homem e alertou para a sua causa. Quem lê a Trilogia Millennium talvez sinta a mesma coisa em relação aos homens e ao mundo. Seria a derradeira vitória de Stieg Larsson.
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