sábado, 8 de dezembro de 2012

O homem velho - João Paulo‏

Estado de Minas -08/12/2012

Há alguns anos Caetano Veloso compôs uma canção, O homem velho. Era uma música muito bonita, um tanto melancólica, mas que parecia soprar um certo apaziguamento. Entre o versos se falava de alma saturada de poesia e rock, de se tornar um farol em meio a mutação do entorno, da coragem de saber que é imortal. São palavras sábias que deixam entrever uma boa relação com o destino. Saber-se imortal é um jeito próprio de aceitar a finitude. 

Caetano Veloso completou 70 anos e lançou um novo álbum, Abraçaço, que compõe com Cê (2006) e Zie e Zii (2009) um tríptico ao lado da banda formada pelo guitarrista Pedro Sá, pelo baterista Marcelo Callado e pelo baixista Ricardo Dias Gomes. São discos que soam únicos na longa obra de Caetano, que parecem nutridos no mesmo núcleo do indie rock. Um cantor e compositor, que é um homem velho, se encontra com jovens para conversar além do tempo. O que fica nítido no processo da trilogia é que os dois lados saem ganhando.

Há um espírito de rock inegável. Mas também se ouve, nos três discos, nuances que os diferenciam, como se fossem todos eles o mesmo e o outro. Em Cê, é o desejo do corpo (embora os sinais da passagem do tempo sejam evidentes); em Zii e Zie parece ser a vontade de participar do mundo (sem pensar que talvez não dê tempo para fazer tudo); em Abraçaço, ao jeito de conclusão, surge a afirmação de certezas, para o bem e para o mal (um abraçaço pode ser um presente ou uma ameaça).

O novo disco tem canções sobre amor e ódio. Cobra justiça contra crimes hediondos na terra sem-lei dos grileiros, reescreve a história da bossa nova com uma energia de luta em vez de abraços e carinhos, tem uma canção muito triste, que dá vontade de chorar. O herói baiano, poeta e guerrilheiro Marighella, assassinado pela ditadura civil-militar, ganha homenagem que a memória brasileira vinha adiando há décadas. A vida está toda lá. A musicalidade, que tem apoio no mesmo violão e na mesma guitarra, com sons eletrônicos antigos e quebradas de ritmo que exigem muito da voz do cantor, tudo isso é a assinatura. Mas o rosto parece ser mesmo o tempo.

Se O homem velho é uma canção para o pai, Caetano também flertou com o tempo para cantar para o filho em Oração ao tempo. Os três discos mais recentes embaralham essa dimensão filosófica, o fato de ser ao mesmo tempo pai e filho, colocando em cena as provocações da história. Caetano não quer se retirar, por isso procura o novo. Ele tem o que dizer para pessoas, que não estão mais atentas a sutilezas. Suas novas canções perfazem esse projeto quase impossível: são intelectuais quanto mais partem da sensibilidade. O rock é talvez seja o último resquício de inteligência possível. Mesmo ele vem se perdendo. Depois só vai restar o silêncio.

Outros 70 
A trajetória dos artistas brasileiros que este ano entraram na casa dos 70 parece trazer elementos que ajudam a colorir um pouco a psicologia e arte popular brasileira. Além de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Paulinho da Viola estão aí confirmando trajetórias e apontando novos rumos. 

Gilberto Gil foi sempre um homem em trânsito. Seu conhecimento da cultura oriental, que é determinado e seguro, fez dele uma pessoa que consulta sempre o I ching, o livro das mutações, não para frear o tempo, mas para confirmar a dinâmica da história. Na música, experimentou dos ritmos nordestinos (talvez seja o maior herdeiro de Luiz Gonzaga e quem melhor entendeu sua herança) ao reggae, passando por tantas fases (rock, punk, afro, disco) quanto lhe inspiravam os desejos e a sabedoria. 

Se Caetano, em sua inclinação ao novo rock nesse momento da vida tem emanações metafísicas, Gil foi espalhando sua inquietação filosófica ao longo dos anos. O tempo, que também perpassa sua poética, é cíclico. Caetano é trágico, vê o passar dos dias como uma seta em direção ao desconhecido, embora saiba o fim da história e não se encante tanto assim com ele; Gil é romântico e sente na carne as demandas do eterno retorno. 

Milton Nascimento é de outra espécie de setentão. Se os baianos buscam, ele confirma. Sua música, que já nasceu madura, carrega elementos de vários momentos de nossa história cultural. Ao surgir, pronto e completo, Milton trazia na voz elementos do passado. Suas canções eram barrocas e modernas. Com o tempo, foram ficando modernas e barrocas. 

Ao propor e levar adiante um projeto coletivo de criação, fez ver aos que estavam a seu lado que a arte é desígnio de homens e mulheres abertos ao mesmo trato com o universo. A beleza, como um passarinho, é de quem pegar. Tudo que ele tocou se tornou Milton Nascimento. Houve um momento em que a história se inverteu. Ele passou a ditar o sentido. Não sabemos bem por que, mas temos uma corda da emoção que foi inventada por ele.

Já Paulinho da Viola foi capaz de uma proeza única, atravessou um rio na vida de um povo. O maior mérito estético do cantor e compositor foi criar o que os físicos chamam de universo paralelo. No fim dos anos 1950, sem que se soubesse bem de onde vinha, a bossa nova tomou conta do samba. A partir daí todo mundo se tornou bossa nova. Paulinho foi o único que não se tocou por ela. Entendeu tudo e continuou fazendo o mesmo samba. Assim, por uma licença especial dos deuses, ficamos habitados por duas manifestações de samba: a bossa nova e Paulinho da Viola.

O mais impressionante, no entanto, é que Paulinho não cessou de evoluir, só que em outro sentido, com outros elementos e belezas. Seu samba tradicional, com o tempo, se tornou ainda mais moderno que a bossa. Se em arte ele é único, em comportamento pessoal criou um padrão de elegância no qual gostamos de nos espelhar. Assim, deixou ao mesmo tempo ao nosso gozo dois prazeres supremos, o da estética e o da ética. 

Para terminar, uma pergunta: você já notou como Caetano está ficando cada dia mais bonito?


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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