quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Com gibi que não é gibi, Chris Ware cria leitura fora de ordem

Folha de São Paulo

Em entrevista à Folha, artista explica o projeto 'Building Stories', que traz 14 peças arranjadas dentro de uma caixa
Edição de HQ, lançada em outubro nos EUA, já está esgotada; não há previsão para publicação no Brasil
DIOGO BERCITODE SÃO PAULO"Caro, aqui está a entrevista, com minhas respostas verborrágicas e pretensiosas demais, pelas quais eu peço perdão antecipadamente."
Desculpas aceitas, Chris Ware. Nem carecia -é justamente a ambição, ou a mania de ser diferente, que marca o trabalho do quadrinista americano premiado com 18 Eisner Awards, o Oscar das HQs, e considerado um dos mais criativos artistas do gênero atualmente em atividade.
Ware está acostumado a construir com temas como isolamento social, depressão e tormento. Ele usa esses mesmos tijolos em seu projeto mais ambicioso: o recém-lançado "Building Stories", que já figura na lista das HQs essenciais desta década.
O gibi, lançado em outubro passado nos EUA e já esgotado, não se parece com um gibi. Por fora, ele lembra uma caixa. Por dentro, traz 14 peças, entre elas um livro, um jornal, um folheto e uma tirinha impressa nos dois lados.
Não há ordem para a leitura, e até a embalagem conta a história, em anotações registradas em seus cantinhos. O leitor constrói a narrativa conforme decide o que ler primeiro e em que sequência.
É a inusitada representação física do que Ware acredita serem as HQs: "o contrário do que pensam que um gibi é, ou seja, uma história ilustrada sobre moral e/ou musculatura em metástase".
Essa concepção, para o artista, "deixa escapar a verdadeira vantagem do meio". "As HQs são a esteticização do processo de leitura, uma tentativa de tomar os conceitos limitantes da linguagem e devolvê-los como coisa visível."
Ware entrega ao leitor as memórias de um punhado de personagens. São lembranças tristes. Como é de seu feitio, ele se concentra nas histórias melancólicas, ao ponto de parecer que as felizes são só uma extravagância.
Uma abelha em crise de gênero. Uma mulher que, deitada, tenta se lembrar de quando o marido passou a sentir repulsa por ela. Uma vizinha sem perna -cuja privada do apartamento entope.
A tristeza é tamanha que parece infiltrar-se nas paredes do prédio em que todos os personagens vivem. Até o imóvel se deprime, enquanto pensa no tempo decorrido desde o seu esplendor (quando ainda tinha friso no topo).
CONSTRUCTO
Uma das chaves para entrar em "Building Stories" está nesse edifício de três andares. O título do gibi pode ser traduzido, em português, como "construindo andares" ou "construindo histórias".
Os quadrinhos foram erguidos com precisão por Ware, que gastou 40 horas para cimentar cada página, "e a aparente clareza do traço vem de querer que a história seja tão legível quanto possível, de forma a permitir maior ambiguidade e incerteza", diz.
"Isso mostra como eu experiencio a vida. Por exemplo, raramente duvido que minha mulher e filha estejam sentadas ao meu lado na mesa de jantar. Mas como cheguei ao ponto em que tenho na mesa de jantar uma mulher e uma filha que amo tanto? Essa é a parte estranha."
Ao publicar "Building Stories" em 14 itens soltos, tendo em vista a experiência tátil de lidar com a obra, Ware se dedica ao livro como meio necessariamente impresso.
Nesse desmembramento do objeto, o quadrinista também cria um gibi que, afinal, não é exatamente um gibi.
"Como o 'livro' é ele próprio um elemento imaginário em 'Building Stories', ele tem de se tornar um objeto físico para que tenha qualquer efeito emocional real no leitor."
Não há previsão de lançamento desse gibi no Brasil. "Jimmy Corrigan", seu maior sucesso, saiu pela Companhia das Letras em 2009.



CRÍTICA / QUADRINHOS
Engenhosa, obra é ápice da carreira do quadrinista
RODRIGO LEVINOEDITOR-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"Faz tempo que quadrinhos deixaram de ser coisa só de criança ou adolescente. Mas é improvável não se sentir assim diante dos 14 fragmentos que compõem "Building Stories", o "tour de force" de Chris Ware, tamanhas as possibilidades, invencionices e formatos da obra.
O fio condutor da trama, dividida em objetos que vão de jornais e tabuleiros montáveis a tirinhas e folders, é a história de uma mulher solitária que tem parte da perna esquerda amputada.
Quer dizer, esse é o desenrolar "normal" da HQ, que acompanha a protagonista da infância à vida adulta. As mil outras possibilidades ficam por conta da curiosidade do leitor. Um desbunde.
À parte o jogo proposto pelo autor, "Building" conserva os traços marcantes de Ware -o pendor para a melancolia, o traço detalhista, a economia de palavras- e é uma obra comovente.
Tempos atrás, Ware disse que via o livro como um corpo vivo. Ao deixar que o leitor dê vida a esse corpo, ele faz com que saltemos livremente no seu modo particular de enxergar o mundo.

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