"Hilda Hilst está superviva"
Daniel Fuentes se lembra bem do dia em que Hilda Hilst (1930- 2004) o seduziu. Era adolescente, estava com uns amigos no Guarujá, onde costumavam ir pegar onda, e carregara para a praia, além da prancha, um exemplar de "Tu Não Te Moves de Ti", três novelas distintas conectadas, título dos mais densos que ela escreveu. Não era sua primeira vez com aquela literatura em nada amena, ao mesmo tempo satírica, erótica e mística, o contrário do que se pretende de um livro para férias de verão. O rapaz havia tentado ler sua obra anos antes, talvez cedo demais para compreendê-la. Não tardou porém a estabelecer a intimidade que nenhum outro leitor pode alcançar. Única criança com quem conviveu, a escritora lhe deixaria os direitos autorais exclusivos em testamento.
A herança era já missionária o bastante, quando, há três anos, se foi o pai de Fuentes, o escritor e amigo próximo da escritora Jose Luis Mora Fuentes (1951-2009), que passou para o filho o Instituto Hilda Hilst. O cargo significava a responsabilidade de preservar a Casa do Sol, sítio onde a autora viveu e ergueu grande parte de sua obra, em Campinas. Significava também assumir uma dívida de manutenção que, só de IPTU em atraso, contabilizava R$ 3 milhões. Seria razoável vender tudo, como lhe propôs uma incorporadora que planejava colocar abaixo o que existia para lotear o terreno. O jovem herdeiro-presidente de 29 anos escolheu o que considerou a "única coisa a ser feita": depois de renegociar com credores, tenta agora tornar o lugar criativo e economicamente sustentável.
Até março, quer instalar no pátio interno um teatro de arena móvel para encenar peças mais experimentais e de vanguarda - um dos projetos em andamento. A arrecadação se dá por meio de "crowdfunding", financiamento colaborativo que tem sido usado para viabilizar ideias artísticas e sociais. A procura por empresas que possam apoiar e patrocinar também começou. Espera-se atingir R$ 15 mil (R$ 11 mil já foram) na primeira etapa. Em outras, a estrutura vai ser ampliada para receber peças de maior porte. Como grande ponto de agito, há a página oficial do Instituto Hilda Hilst no Facebook. A principal ação nesta véspera de Natal é o sorteio da obra reunida em 22 volumes, promoção apoiada pela Globo Livros, responsável pela empreitada editorial.
"Hilda Hilst está superviva", diz Fuentes. A boa notícia mais recente são as novas traduções nos EUA - a autora é chamada de "o milagre literário de 2012" pela revista literária americana "Full Stop". Por mês, autoriza até dez peças. Dá seu OK a projetos audiovisuais, CDs e desfile de moda. Cada vez sobra menos tempo para a atividade de antes, a de produtor executivo em sua Catatonia Filmes. O cientista social que se formou na PUC tratou de cursar um MBA em bens culturais pela FGV. Quem o vê falando logo conclui, pela articulação e entusiasmo, que nasceu mesmo para administrar o legado da escritora.
A conversa termina debaixo da grande figueira que serviu de marco inicial da construção da Casa do Sol, em fins da década de 1960. Até então uma moça avançada para a época, habitué da boemia artística paulistana, Hilda entendeu que precisava sair daquela vida para construir a obra que queria. Vendeu o imóvel onde residia no Pacaembu, em São Paulo, se desfez dos vestidos desenhados por Dener, o grande estilista da época, e transportou os livros, um acervo que tem hoje 3 mil exemplares. O espírito conventual favoreceu rotina de criação de até dez horas por dia, como se recordam os que habitaram aqueles dias: Fuentes, sua mãe, Olga Bilenky, e Jurandy Valença, o diretor de projetos.
O isolamento não a afastou dos amigos - alguns, convidou para morar com ela, outros a visitavam sempre, e, entre os companheiros de toda a vida, os cães que chegaram a ultrapassar o número de 150 são hoje 14. Para arejar, vestia túnicas e calçava sapatilhas, compradas em lojas de produtos de Índia e Israel.
Sob o sol abrasador de dezembro, a Casa do Sol é o "único lugar ventilado em toda Campinas", segundo Olga. A pintura, na antiga técnica de caiação, garante a temperatura fresca. A cor empregada é do mesmo modo singular. O tom é um rosa amarronzado, mistura de tintas verde, vermelha e marrom que leva dois dias para ter seu ponto encontrado. Com o jardim, a grande moradia soma 9 mil m2 tombados desde o ano passado. Dentro, há móveis coloniais e rústicos, obras de arte e fotografias na parede, objetos de fundo religioso e místico em quase todos os cômodos.
A mesma inspiração de Hilda buscam os que ocupam a Casa do Sol em regime de residência artística, outro projeto em curso. Por um fim de semana ou três meses, pessoas que querem criar e estudar - muitas vezes sua obra, mas não só - têm frequentado o ambiente onde viveu quatro décadas. A estadia é "artisticamente intensa", diz Caroline Aguiar, uma das tradutoras de seus versos para o inglês. Outra residente é Anna Giovanna Rocha Bezerra, que quer estabelecer os elementos comuns na vida e na obra para escrever uma biografia da poética, sua tese de doutorado. Ela vê a casa como personagem quase constante.
Lugar onde viveu e criou, personagem de sua obra, a Casa do Sol é hoje sobretudo "a maior peça do arquivo de Hilda Hilst", como diz Fuentes. Por enquanto, a arte se sobrepõe à corrida imobiliária.
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