Jefferson da Fonseca Coutinho
Estado de Minas: 06/01/2013
Fim de 2012. Numa das curvas do destino, o taxista Eduardo Damasceno Monteiro, de 43 anos, encosta o carro para reencontrar o passado e rever a vida. Na esquina de ruas Dona Cecília e Palmira, no Bairro Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, mulher e filho entram no automóvel de aluguel. Brenisia Ferreira Monteiro, de 40, e Jonatas, de 11, indicam o endereço para a corrida curta, de quarteirões. Eduardo, atento ao caminho, não percebe o olhar diferente da passageira ao ver, no painel, o documento de identificação do motorista. “Seu Monteiro é de onde?”, pergunta Brenisia. Daí em diante, o que segue é desfiar de quase quatro décadas. Tempo iniciado com o nascimento de “uma criancinha branquelinha, magrelinha, criada sem pai nem mãe, largada na roça” – palavras de Brenisia. Uma história tocante que traz de volta o fim dos anos 1960, em Santo Antônio dos Araújos, povoado de São Sebastião do Maranhão, no Vale do Rio Doce.
“Nunca esqueci. Não podia esquecer o Nego, menininho branquelinho, muito miúdo, que brincava com a gente na fazenda. Sempre quis reencontrá-lo. Ele era filho do meu tio, mas agora há uma conversa na família que ele é filho do meu pai”, emociona-se. Brenisia, ao lado de Eduardo, fala na semelhança entre eles. “Quando entrei no carro, antes mesmo de ver o nome dele, senti algo diferente. Quando vi o Monteiro escrito, não tive dúvida”, ressalta. A costureira revela que passou anos procurando por ele em Belo Horizonte. “Quando soube que ele morava em Ribeirão das Neves e que trabalhava com táxi, fui até lá e procurei, perguntei até, mas ninguém sabia dele”, conta. Na sala da parente, Eduardo, na contramão do tempo, revisita o passado. Deixa escapar lágrimas, por vezes.
Brenisia não se intimida e desabafa, inflamada, com a criação largada do pequeno Nego, na roça. “Pais que deixam os filhos para trás dão um péssimo exemplo. As crianças nada têm a ver com os erros dos adultos”, diz. Eduardo rompe o silêncio, embargado. “Não importa a quantidade de filhos. Fala assim: ‘Ah, tive 10 filhos, por isso deixei um para trás’. Não está certo. Não pode, não. Se não tem condição, então morre todo mundo junto”, revolta-se.
O taxista não dá conta de esconder a angústia pela infância longe do pai e da mãe. O reencontro com Brenisia trouxe à tona a vontade de Eduardo de conhecer o pai, Mário Ferreira Monteiro, que mora em São Paulo. Agora, espera para saber se é filho do outro Monteiro, o pai de Brenisia. Primos, ou irmãos, os dois já combinaram exame de DNA em família.
VERDADE Na casa de Eduardo, em Ribeirão das Neves, na Grande BH, Amélia da Silva Matos Monteiro, de 39, e a pequena Yasmin, de nove meses, são o esteio do taxista. A mocinha, no maior dengo com o pai, faz festa para os visitantes. Posa para foto, cheia de mimo com os pais. Amélia suspira ao ouvir o passado do marido. Ajuda-o a encontrar documentos e fotografias que comprovem as passagens incríveis que ele desfia. Numa delas, conta a vida no alambique, no povoado de Araújos, aos 7 anos, “fazendo e bebendo cachaça o dia inteiro”. Chora ao falar da vida difícil, maltratado pela família do avô paterno. “Minha mãe não tinha condição de me criar e me deixou na casa do pai do meu pai… pelo que soube, eu tinha um mês de vida. Lá, eu vivia no estábulo, largado. Mas nem me lembro direito”, diz.
Ao colo, Yasmin, de expressão séria e concentrada, não entende a tristeza do pai. Amélia faz carinho e sai da sala com a mocinha. Eduardo conta que “andou errado” e que teve outra filha fora da união de 18 anos com Amélia. “Minhas coisas são tudo direito. Até quando eu erro eu tento fazer a coisa certa. Virei para minha mulher e disse: ‘Quem faz a coisa errada um dia a casa cai. E a minha caiu’. Ela chorou muito, mas entendeu e me aceitou. Porque não existe nada melhor que a verdade”, ensina. Maria Eduarda, de 3 – a filha fora do casamento –, é vizinha. “Na medida do possível, está sempre com a gente aqui em casa. O quarto dela é aquele ali”, aponta.
“Nunca esqueci. Não podia esquecer o Nego, menininho branquelinho, muito miúdo, que brincava com a gente na fazenda. Sempre quis reencontrá-lo. Ele era filho do meu tio, mas agora há uma conversa na família que ele é filho do meu pai”, emociona-se. Brenisia, ao lado de Eduardo, fala na semelhança entre eles. “Quando entrei no carro, antes mesmo de ver o nome dele, senti algo diferente. Quando vi o Monteiro escrito, não tive dúvida”, ressalta. A costureira revela que passou anos procurando por ele em Belo Horizonte. “Quando soube que ele morava em Ribeirão das Neves e que trabalhava com táxi, fui até lá e procurei, perguntei até, mas ninguém sabia dele”, conta. Na sala da parente, Eduardo, na contramão do tempo, revisita o passado. Deixa escapar lágrimas, por vezes.
Brenisia não se intimida e desabafa, inflamada, com a criação largada do pequeno Nego, na roça. “Pais que deixam os filhos para trás dão um péssimo exemplo. As crianças nada têm a ver com os erros dos adultos”, diz. Eduardo rompe o silêncio, embargado. “Não importa a quantidade de filhos. Fala assim: ‘Ah, tive 10 filhos, por isso deixei um para trás’. Não está certo. Não pode, não. Se não tem condição, então morre todo mundo junto”, revolta-se.
O taxista não dá conta de esconder a angústia pela infância longe do pai e da mãe. O reencontro com Brenisia trouxe à tona a vontade de Eduardo de conhecer o pai, Mário Ferreira Monteiro, que mora em São Paulo. Agora, espera para saber se é filho do outro Monteiro, o pai de Brenisia. Primos, ou irmãos, os dois já combinaram exame de DNA em família.
VERDADE Na casa de Eduardo, em Ribeirão das Neves, na Grande BH, Amélia da Silva Matos Monteiro, de 39, e a pequena Yasmin, de nove meses, são o esteio do taxista. A mocinha, no maior dengo com o pai, faz festa para os visitantes. Posa para foto, cheia de mimo com os pais. Amélia suspira ao ouvir o passado do marido. Ajuda-o a encontrar documentos e fotografias que comprovem as passagens incríveis que ele desfia. Numa delas, conta a vida no alambique, no povoado de Araújos, aos 7 anos, “fazendo e bebendo cachaça o dia inteiro”. Chora ao falar da vida difícil, maltratado pela família do avô paterno. “Minha mãe não tinha condição de me criar e me deixou na casa do pai do meu pai… pelo que soube, eu tinha um mês de vida. Lá, eu vivia no estábulo, largado. Mas nem me lembro direito”, diz.
Ao colo, Yasmin, de expressão séria e concentrada, não entende a tristeza do pai. Amélia faz carinho e sai da sala com a mocinha. Eduardo conta que “andou errado” e que teve outra filha fora da união de 18 anos com Amélia. “Minhas coisas são tudo direito. Até quando eu erro eu tento fazer a coisa certa. Virei para minha mulher e disse: ‘Quem faz a coisa errada um dia a casa cai. E a minha caiu’. Ela chorou muito, mas entendeu e me aceitou. Porque não existe nada melhor que a verdade”, ensina. Maria Eduarda, de 3 – a filha fora do casamento –, é vizinha. “Na medida do possível, está sempre com a gente aqui em casa. O quarto dela é aquele ali”, aponta.
A volta por cima
Jefferson da Fonseca Coutinho
Entre as desventuras na fazenda dos Monteiros, Nego, aos 8 anos, conseguiu morada na casa do prefeito de São Sebastião do Maranhão. Lá, diz que foi muito bem tratado e que conheceu uma outra condição de vida. Mas não durou muito. Conta ter feito xixi na cama e que, por isso, fugiu numa madrugada. “Fiquei com tanta vergonha que nunca mais tive coragem de voltar lá”, sorri, tímido. Acabou de volta às terras do avô, onde ficou por mais dois anos. Aos 10, arranjou trabalho em povoado vizinho e foi morar num galpão. “A gente morava tudo junto. Tinha muita criança e muito adulto. Tudo funcionário da fazenda. Aí, com uns 15 anos, comecei a namorar a filha do patrão e foi aí que a minha vida mudou”, revela. |
Foi aos 17 que Eduardo diz ter colocado o primeiro calçado no pé. É também dessa época a primeira fotografia que ele faz questão de mostrar. No papel envelhecido, com número escrito em garrancho – 21.5.89 –, a imagem de um jovem triste, a cavalo, se esfarela com o tempo. O taxista deixa a sala de visita no sobrado do Bairro Elisabeth. Volta com refrigerante e pasta de documentos. Exibe a certidão de nascimento, registro de 3 de novembro de 1987. “Nem sei ao certo o dia em que nasci. Nem meu pai nem minha mãe estavam no cartório. Eu precisava de documento porque nem existia. Fui atrás do meu avô e pedi para ele me registrar. Ele foi lá e fez a minha certidão. Mas erraram o nome do meu pai e da minha mãe. Olhe só…”
Documentado, endereço da mãe nas mãos – anotação de parente distante –, em 1989, Eduardo decidiu procurar a mãe em Ribeirão das Neves. “Eu já era homem feito e vi a minha mãe pela primeira vez depois de quase 20 anos que ela me deixou. Ela mora aqui perto. Vamos lá?” Não demorou para encontrar a rua estreita, vizinha de bodes, cabras e galinhas. Crianças brincam alegres. Maria Damasceno Soares, de 62, simpática, tem o olhar profundo, da vida difícil, mãe menina de Eduardo mais oito. Na sala da casa de família, dona Maria conta que tentou buscar o filho. “A família do pai não deixou”, diz. A irmã mais velha de Eduardo, Maria Aparecida, confirma.
CARINHO A professora é outra que cresceu sem o pai. “Não sei dele. O que me falam é que ele está vivo.” Maria Aparecida se emociona ao relembrar o dia em que, adulta, foi atrás do pai. “Deixei o endereço, meu contato. Ele nunca deu notícia. Naquele instante, não senti nenhum afeto, nenhum carinho da parte dele.” A professora lamenta a pouca sorte no passado e critica os pais ausentes. “Pai e mãe precisam cuidar melhor dos filhos. A família é a base. São filhos demais no mundo e pouca responsabilidade.” Eduardo ouve atento, enquanto dona Maria Damasceno suspira silenciosa.
Eduardo morou pouco tempo com a mãe e seguiu seu rumo. “Fiz Mobral, estudei legislação e realizei o sonho de tirar carteira de habilitação”, conta. Trabalhador – são 16 horas diárias, de segunda a segunda, ao volante –, o taxista, auxiliar, diz lutar para não deixar faltar nada para as filhas, Maria Eduarda e Yasmin. “Só quero ter uma condição melhor para ter mais tempo para as duas, porque chego a passar dias sem ver as minhas filhas. Ninguém pode crescer sem os pais. Ninguém. Dói demais. Muito mesmo”, chora.
De volta à corrida pelo Bairro Serra, o reencontro com Brenisia trouxe a Eduardo novas alegrias. “Agora, a gente não some nunca mais”, sorri, enxugando as águas com as costas das mãos.
“Ninguém pode crescer sem os pais. Ninguém. Dói demais.
Muito mesmo”
Eduardo Damascento Monteiro, taxista, de Ribeirão das Neves
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