domingo, 6 de janeiro de 2013

Tendências/Debates

FOLHA DE SÃO PAULO

MIGUEL SROUGI
Médicos inaptos: algozes ou vítimas?
Mais importante do que abrir faculdades é aumentar as vagas para residência. Novos médicos são vítimas de um enredo perverso
Os últimos dias não foram de felicidade para os brasileiros. Entre outros motivos, descobriram que 54,5% dos médicos recém-formados da nação são inaptos para a profissão.
Não fiquei surpreso com o número e com a indignação. Afinal, lideranças e educadores médicos já conheciam a indecência e, impotentes, nunca conseguiram eliminá-la. Sem tergiversar, julgo que profissionais inaptos devem ser impedidos de exercer a profissão e que uma legislação impondo um exame de capacitação dos novos médicos já deveria ter sido promulgada.
Contudo, não posso deixar de expressar certa angústia quando dirijo um olhar a esse grupo. Confesso que nunca me deparei com um médico recém-formado que não acalentasse o sonho de se tornar um profissional respeitado. Se isso não se concretiza, suspeito que outras razões produzem o descompasso. Entre elas, a mistura de uma sociedade complacente e governantes incompetentes.
Como ignorar a influência negativa da sociedade, que se rejubila com a abertura de novas escolas médicas, iludida pela ideia de que estão sendo criadas maiores oportunidades para seus jovens? Cedendo a esses apelos e à pressão de empresários oportunistas, o governo federal autorizou, entre 2000 e 2012, a abertura de 98 novas faculdades, perfazendo um total de 198 escolas no país; nos Estados Unidos, habitado por 314,3 milhões de pessoas, existem 137 instituições similares.
Numa nação de dimensões continentais e insuportável desigualdade, seria racional que as novas escolas médicas fossem acomodadas em regiões remotas do Brasil. Contudo, 70% delas foram instaladas na região sudeste, rica e congestionada, e 74% são de natureza privada, cobrando taxas exorbitantes de alunos.
Contrariando as leis vigentes, a maioria desses centros não dispõe de instalações hospitalares adaptadas para o ensino e carecem de corpo docente qualificado. Isso indica que o processo foi norteado por interesses políticos menores e pelo anseio do lucro desmedido e predador.
Agravando esse cenário, autoridades federais têm dado demonstrações adicionais de inconsequência e de tolerância suspeita. Uma comissão especial do MEC presidida pelo professor Adib Jatene descredenciou, há um ano, algumas escolas médicas, pela baixa qualidade de ensino. De forma misteriosa e inexplicável, a Comissão Nacional de Educação cancelou, em fevereiro passado, a ação corretiva adotada. Resolução nefasta para a sociedade brasileira e auspiciosa para os mesmos predadores da nação.
Nossa presidente anunciou sua disposição de abrir mais 4.500 vagas para alunos de medicina (algo como 55 novas escolas). Num momento em que as universidade federais se encontram em estado de penúria, essa meta torna-se um devaneio descompassado com a realidade da nação.
Mais importante do que criar novas faculdades seria aumentar as vagas para residência médica. Cerca de 6.000 novos médicos formados a cada ano não dispõem de locais para realizar a residência, a etapa mais relevante para a formação de profissionais qualificados.
Outra proposta governamental, tão cândida quando descabida, é autorizar o trabalho em nosso país de médicos patrícios formados no exterior, sem exames de proficiência. Se 54,5% de médicos recém-formados inaptos causam indignação, como reagir ao fato de que em 2011, num exame oficial de revalidação de diplomas de 677 médicos graduados no exterior, 90,5% deles foram considerados inaptos?
Termino referindo-me a uma realidade que Riobaldo, o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa, soube muito bem descortinar. "Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor." Reconheço que as inquietações expressas sobre as aptidões dos recém-formados são justificadas por quem sente de fora. Mas como um dos que sentem de dentro, não posso deixar de dizer que, ao invés de algozes, a imensa maioria dos novos médicos da nação são vítimas de um enredo perverso que mistura uma sociedade permissiva, escolas médicas deficientes e governantes incapazes. Que transformam esperanças incontidas em sonhos frustrados.

    MARCOS TROYJO
    A doutrina do "Local-Contentismo"
    No momento em que a economia global tenta se recuperar, uma forte tendência ao "Conteúdo Local" mostra sua face
    O mundo está menos plano. Neste instante em que a economia global tenta recuperar-se das crises financeiras de 2008 e 2011, uma forte tendência mostra sua face. Podemos chamá-la de "Local-Contentismo". Cada vez mais países vêm adotando práticas de política industrial amparadas na noção de "Conteúdo Local".
    Na América Latina, o socialismo bolivariano ou o ultraliberalismo apresentaram nos últimos 20 anos ao menos uma característica semelhante. Não conceberam qualquer forma de política industrial. A tradução econômica do socialismo bolivariano tem sido a mera "estado-nacionalização" de ativos industriais. Combina um xenofobismo "além-América Latina" com o equivocado pressuposto de que a riqueza está nas instalações físicas, e não no know-how de pessoas e processos.
    Ainda na América Latina, interpretou-se o Consenso de Washington como se o fluxo desimpedido de capitais levasse sempre a alocações "ótimas" também no setor manufatureiro. Formular políticas industriais seria algo "fora de moda". Aqueles países que adotaram mais organicamente essas diretrizes nos anos 90 experimentaram crises cambiais desestabilizantes e encolhimento de parques industriais.
    No Brasil, o apagão de política industrial que se instalara desde os anos 80 foi interrompido apenas a partir de 2003. Seu principal componente: o Local-Contentismo. São marcantes as exigências de conteúdo local para a retomada de setores como indústria naval, software, semicondutores, eletroeletrônicos e outros. Já em âmbito mundial, a figura do mercado como instância "inteligente" para decisões industriais encontra-se em xeque. O Estado-Nação e os governos retomaram o status perdido em momentos de maior globalização.
    Os EUA, o Japão e a Europa estão reformulando suas políticas de "Local-Contentismo". Nessa dinâmica, noções como a de "empresa-rede" -que espraia sua produção pelo mundo numa intricada combinação de logística, custos relativos e talentos- estão perdendo espaço para operações que se concentram num único mercado em que gozam dos benefícios de compras governamentais e outros incentivos "local-contentistas".
    Mesmo a China, que nutriu seu crescimento à base da estratégia de "nação-comerciante", hoje seduz o mundo industrial com grandes contratos (em que o governo chinês, empresas e consumidores chineses são os compradores) desde que a atividade seja desenvolvida localmente, assim contratando mão de obra e gerando impostos na China.
    Há claras diferenças entre "Local-Contentismo" e protecionismo tradicional. Ao passo que o segundo é marcado por escudos tarifários e quotas, o primeiro idolatra investimentos estrangeiros diretos e faz amplo uso do instrumento de compras governamentais.
    O "Local-Contentismo" é também uma das formas com que os países buscam combater a hipercompetitividade chinesa. Eventuais perdas nos custos comparativos com congêneres chineses são compensadas pelos benefícios fiscais e de geração de empregos tornados possíveis por políticas "local-contentistas".
    Para a economia global em seu conjunto, o "Local-Contentismo" representa perda de eficiência. Só se sustenta ao longo do tempo com margens de lucro artificialmente alimentadas em nome do investimento no aumento da competitividade. Assim, impactará negativamente a expansão do comércio internacional e as rodadas da OMC.
    Para o Brasil, o "Local-Contentismo" só terá valido a pena a longo prazo se tiver gerado velozes ganhos de produtividade de modo que a indústria local harmonize sua capacidade internacional de competir.

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