domingo, 6 de janeiro de 2013

Uma questão moral - Cristovão Tezza

FOLHA DE SÃO PAULO

Um conto de futebol
CRISTOVÃO TEZZATentou ajeitar o relógio no pulso - ou o cronógrafo, como ele gostava de frisar aos ignorantes -, com uma ansiedade que logo se transformou em tensão muscular, subindo pelo braço até se alojar discreta no lado esquerdo de suas costas, ele até poderia apontar com o dedo se a mão chegasse àquele ponto cego de si mesmo: é aqui, doutor, se eu mexo assim, o corpo torcido no esforço, a pontada exata na alma do nervo.
Apenas um rosto, praticamente um vulto que ele viu de passagem ao descer ao vestiário para se trocar, depois de cumprimentar os conhecidos com a gentileza contida que seu trabalho exigia, teve esse poder elétrico de acordá-lo no mau sentido: sim, era o Robertson, ou o Bets, apelido de infância, ele conheceu todas as versões do mesmo ser, acompanhou cada passo inicial de sua carreira quase fulgurante, que se estagnou como reserva do Corinthians, para daí cair e desaparecer com a mesma facilidade, o driblador, o pipoqueiro, o malandro, o goleador de lua, o criador de caso.
Nunca mais ouviu falar. Assim como nunca mais ouviu falar da Maria, que se evaporou mais fulgurante ainda. E agora (estaria com 38 anos, como ele?) reaparece neste fim de mundo e neste campo esburacado, exatamente com o mesmo sorriso, para tentar levar aquele timeco à série B, no penúltimo jogo da rodada, talvez o último da vida dele. Então é aqui que ele veio parar? Enfim conseguiu fechar a pulseira do cronógrafo, brilhante no seu braço, e sorriu cordial para os dois bandeiras, que, disciplinados no banco diante dele, aguardavam o momento de subir, orgulhosos no uniforme preto.
Um deles era conhecido, o Mauro, bom menino, frequentava a igreja, tinha futuro; o outro nunca tinha visto mais gordo, indicação sabe-se lá de quem, prazer, Edislon, disse o garoto, prazer, João Batista, disse ele, e trocaram algumas palavras, mas ele estava tenso e irritou-se mais por imaginar que talvez pensassem que a tensão viesse do medo do jogo e da torcida, esmagada como um bicho atrás da tela de arame a poucos metros do campo, eu já passei por isso milhares de vezes, teve vontade de dizer, eu seguro esse povo no grito e no apito, comigo não tem conversa: uma vez esmurrou um presidente de clube que chegou a ele num vestiário como esse com um envelope cheio e um sorrisinho sacana, o que lhe valeu uma suspensão interminável, que se fodam, eu não preciso dessa merda, eles é que precisam de mim, como agora, me desenterrando do limbo para esse jogo de vida e morte, isso aqui é o inferno, por isso que me chamaram.
E quem eu encontro no campo, ele se imaginou justificando-se ao Tribunal Desportivo, para onde com certeza será chamado, quem sabe à própria mulher e aos seus três filhos, não, isso não, que não merecem a culpa. Mas alguém teria de saber realmente o que houve, e ele conferiu a amarração do apito no seu pulso direito para não perdê-lo, a sua arma, é minha arma branca, um dia disse a um amigo com um raro sorriso, ele jamais fazia piada de seu trabalho, uma arma branca no bom sentido, corrigiu, que não pensassem que.
E lembra do velho amigo com quem rompeu só porque, chegando à sua casa nova no bairro Madalena, erguida com o suor do seu rosto desde o terreno em 60 prestações, e depois tábua a tábua, pintadas por ele mesmo em cada friso, para quem trabalha de segurança a vida é dura, e o cara dá aquele tapinha nas costas diante de sua obra e diz, vejam se isso é coisa que se deve ouvir, e diz, o sujeitinho, "Caramba, quantos pênaltis você teve de apitar pra construir essa casa? Só naquela varanda tem uns cinco impedimentos, ahah!", e o churrasco entre amigos azedou, como se ele de fato tivesse pênaltis nas costas, nenhum, seu vagabundo, nenhum! Calma, João Batista, foi brincadeira, pô, a gente se conhece há quantos anos?!
Ele olhou o cronógrafo (custou caro esse relógio, esse sim, veio com o travo do supérfluo, uma expressão que ele guardou de um sermão e agora repetia ao delegado, enfim era o orgulho aceitável da profissão bem exercida, mas a casa é sempre trabalho sagrado, ele que fizesse brincadeira com a mãe dele) e sugeriu aos dois novatos uma breve oração antes do jogo, e os três fecharam os olhos (ele não ouviu a voz do Edislon, que talvez nem tivesse mantido os olhos fechados em respeito, quem sabe não fosse católico), Pai Nosso que estais no Céu, e de novo se cumprimentaram, um pouco mais relaxados agora, e o rugido que chegava pelo pequeno túnel deste estádio metido a besta, ele pensou, parece que mais os estimulava que amedrontava, mas ele pressentia o temor dos dois jovens colegas, subir ao campo era descer ao inferno, o grande teste da nossa profissão, pensou em dizer, como o veterano que orienta, já quase esquecido do Bets, mas era o próprio mesmo, nenhuma dúvida, ele ainda tentava se persuadir do contrário para se livrar do que deveria enfrentar.
Era ele sim, o Bets, bem acabado para a idade, e conferiu ainda a moeda para o sorteio e os cartões no bolso da camisa, o amarelo na frente (uma vez trocou os cartões e não destrocou para não perder autoridade, uma falta ridícula punida com cartão vermelho, o pior erro de sua carreira), e ali estavam quatro policiais militares à espera para que a trinca de árbitros chegasse ao campo em segurança, uns poucos passos sob a torcida ululante, ele nem ouvia mais, conferindo num lado, depois no outro, a perfeita fixação das redes sob o gol (outra vez quase apitou um gol-fantasma, a bola entrando por fora e se aninhando vagabunda no fundo, não fosse o auxiliar erguer a bandeira, ele -).
Sim, o Robertson, perdeu tudo mas não perdeu a pose, faixa de capitão, mãos na cintura e o sorriso perpetuamente cínico, ele sabe o mal que ele faz, à espera do início no círculo central, desde já conferindo o lado em que o sol se punha para azar do goleiro, deu coroa, ele sempre teve sorte mas nunca soube o que fazer com ela, escolheu o lado e distribuíram-se os times, os cumprimentos de praxe (ele de fato não me reconheceu), e antes de esticar o braço e dar partida, o número 7 deles aguardava o início ostensivamente no campo do adversário; ao ser advertido, agachou-se para amarrar o cordão da chuteira, e ele não teve dúvidas, avançou com o amarelo, o primeiro do jogo, antes mesmo de o jogo começar, vá fazer gracinha na casa da sua mãe, quase disse, mas o tumulto foi breve, alguém empurrou o idiota reclamão de volta ao seu campo e o primeiro apito se perdeu sob a vaia ensurdecedora, e só então ele fez o sinal da cruz, já correndo de olho na bola: hoje ele paga.
O jogo estava lento mais de nervoso do que de estudo, o que lhe dava tempo para pensar, vendo as coisas de longe, mas que não se enganasse: uma panela de pressão chiando baixo naqueles primeiros dez minutos, e com o rabo do olho percebeu que Robertson só ficava no bem-bom, lá na frente, deitado na banheira, economizando gás, à espera de uma bola solta e perdida que faria sua glória diante do goleiro em pânico, mas o jogo não saía do meio, passes curtos e errados dos dois times, na dúvida o chutão para a frente e para os lados.
Talvez expulsá-lo logo, mas isso seria pouco para fazer justiça. Percebeu o lateral para o time deles, a bola raspou na canela da defesa antes de sair, mas Edislon, de boa-fé, sem ângulo para ver, deu o contrário, o que ele aceitou, e foi o bandeira que levou a vaia. A paixão que sentia por ela, nos 18 anos, em janeiro de 1992, mas ele não podia dizer agora, porque casou com outra. Não foi covardia. Que homem casaria com ela naquela situação? Eles não eram nem noivos, apenas apaixonados de mãos dadas, o que era melhor ainda, ele sonhou. Um ato de justiça a se fazer, não por dinheiro, que não sou disso, mas por justiça, ele teria de dizer em alto e bom som (na verdade, já livre, cochichou ao padre Zélio quinze dias depois, e ouviu na penumbra do confessionário um longo silêncio que ele imaginou compreensivo), e apitou com prazer o impedimento escancarado de Robertson, voltando dos cinco metros de banheira fazendo o "não" cínico e sorridente com a cabeça, ele é engraçadinho.
E não está mesmo me reconhecendo, o que facilita as coisas. Inverteu uma falta clara que o idiota do camisa 7 levou, mandou-o levantar-se logo, daqui a pouco ele leva o segundo amarelo, fez a marca no gramado e correu para a área inimiga, contando em passos generosos a distância da barreira, eles que levassem logo um gol nos cornos, mas a bola foi parar no último anel da arquibancada. O goleiro fez cera para cobrar o tiro de meta (o empate classificava o time deles), e ele fez vista grossa, ainda pensando numa estratégia. Talvez devesse odiar Maria, não Robertson, mas não conseguia. Ainda foi perguntar, dois dias depois da tragédia, se ela precisava de alguma coisa, humilde como um tatu, e ela abraçou-o tão carinhosamente, chorando feito criança, se ele tivesse forças para enfrentar a vergonha, mas não teve; ela ainda disse, fique comigo, por favor.
Humilde até certo ponto, certo? Tem um limite que. O senhor compreende, padre Zélio? Nenhuma resposta -algumas coisas são tão nossas que Deus não se mete. O problema era só meu, como agora: Robertson levou uma sarrafada na meia-lua, a primeira bola que chegou ali, e ele quase manda seguir o jogo, mas o urro da plateia como que apitou por ele. Faça a coisa bem feita, ele se disse, você tem um nome. Não deixe rastro. Ainda mancando, Robertson ajeitou demoradamente a bola no tufo de grama, um trabalho de relojoeiro, e olhou para a frente. Dez minutos de jogo e esse canalha vai fazer um gol, e ele procurou por alguém impedido para apitar já no chute e parar o lance, mas não havia nem com a dádiva da dúvida: um burro deles amarrado no segundo pau, ao lado do goleiro, dava condição escancarada, eles estão brincando, mas o chute bateu na barreira e voltou para ninguém.
Não se lembra bem do que houve, ele disse ao prestar depoimento, e foi sincero. Deu aquele branco. Mas se lembra de cada segundo da Maria, vinte anos antes, o vazio da revelação, e ele em seguida, meio cego, casou com outra, com quem vive até hoje e de quem tem três filhos, e quer saber de uma coisa? Jamais gostei da minha mulher e nem meus filhos me apaixonaram, um depois do outro, mas a gente vai levando o que é da natureza, pelo amor de Deus, eu nunca disse isso a ninguém, mas é o que eu sinto aqui no peito. E se fosse outra mulher e outros filhos seria tudo a mesma coisa. Só a Maria.
No intervalo, sob a tensão do zero a zero, voltando ao vestiário, pressentiu que também para ele aquele era um último jogo. Os bandeiras talvez estranhassem a concentração soturna do árbitro, ele não queria falar. Tentou lembrar as quatro situações marcantes do primeiro tempo em que ele poderia ter apitado errado, com fúria e determinação, provocando a reclamação também furiosa que o levaria no ato a puxar o cartão vermelho vingador, ele ensaiava mentalmente o gesto, um final melancólico para Robertson e uma vingança justa para Maria. Sairia desonrado de campo sob a dupla justiça da vaia e da suspensão automática no próximo e último jogo do torneio, enterrando a si mesmo e ao seu time, que só precisava de um único gol. Mas nenhum dos lances foi ambíguo: faltas claras como água e brutas como porretes, que eles sabiam do perigo daquele velho em fim de carreira, e ao apitar o lance o braço se esticava para o lado certo e justo, como se ele fosse pago pelo Robertson, que se erguia abraçando sedento a bola e reclamando cartão ao adversário, o cara nunca está satisfeito.
Uma hora essa bola vai entrar e ele vai sair carregado de campo, imaginou em pânico, e eu só tenho 45 minutos. Não dizia uma só palavra no vestiário, como se a vida lhe caísse nas costas de uma vez só: Maria confessando que estava grávida. "O Robertson." Como se, dizendo o nome inteiro e não o apelido de rua, as coisas ficassem mais dignas. Ele se afastou sem olhar para trás, subitamente bêbado, passos perdidos, a falta de ar, e quando ela começou a segui-lo suplicante, puxando seu ombro com a mão suada, ele correu três quilômetros até parar e vomitar, como se o filho estivesse na barriga dele. No dia seguinte, por mais que quebrasse a cabeça não conseguia imaginar o desenho de um mundo em que ele tivesse lugar. E eu sou uma pessoa boa. E no terceiro dia foi abraçá-la, mas terminou ali. Robertson há dois meses já estava contratado em Recife, o que prometia muito.
- Me jogaram uma garrafa de plástico - disse Edislon, sem ênfase. E, para que ninguém se incomodasse: - Nem me acertou. Aquele povo xinga muito.
- Eu vou anotar na súmula - ele disse enfim, maquinal, pensando em outra coisa: o Edislon poderia ser filho dela, a idade provavelmente bate, assim como Mauro. Todos pardos. E disfarçadamente conferiu mais uma vez a lista de jogadores: 10, Robertson. É ele sim.
Um jogo horroroso no segundo tempo, e ele continuava incapaz de ser injusto, só apitando errado, covarde, quando os bandeiras erravam, o que foi aumentando a irritação, principalmente com o cinismo daquele que era caçado em campo como um cão sarnento, sempre se levantando sorridente como se não fosse com ele e ajeitando a bola com a mesma determinação inútil. Ele está velho, não vê mais nada, o chute é torto e a partida da vida dele está chegando ao fim. Eu ainda posso apitar por alguns anos, mas ele não pode mais jogar nem meio tempo, e sabe disso. Só a piedade e o desespero o mantêm em campo.
Trinta minutos de jogo e um único chute a gol, do outro time. Robertson a vida inteira plantado no meio de campo com as mãos na cintura, esperando um milagre. Num momento, sobe a placa de substituição, e João Batista sentiu o frio na alma: vão trocá-lo, e ele vai fugir de novo, como se nada tivesse a ver com ele, nem mesmo este jogo. Mas não, era o grosso do camisa 2 que queriam, antes que levasse o vermelho. Olhou para o cronógrafo: vou dar mais quatro minutos pela cera.
Então aconteceu, ele se viu contando ao delegado como se fosse essa a questão, e não a outra: numa sequência de chutões desesperados a bola caiu na área exatamente ao longo do peito dele, inclinado caprichosamente para trás, de costas para o gol e braços abertos; e ele deu um chapéu como nunca na vida, levou um empurrão que, agora sim, eu não apitei, e o filho da puta conseguiu dar um segundo chapéu mesmo sem equilíbrio, já entrando na pequena área, e levou um pontapé no tornozelo que eu também não apitei porque uma hora aquilo ia acabar e ninguém conseguia ver nada, era só o que faltava eu apitar um pênalti ali, cinco jogadores erguendo um muro em torno dele, até que ele deu às cegas um toque de calcanhar sem saber o que fazia e o goleiro pego no contrapé caiu de boca na grama como um ganso bêbado, o braço inútil para o outro lado, e a bola devagar cruzou a linha parando mansa três palmos adiante, imóvel como um presente.
Aquilo me transtornou. Eu deveria ter apitado antes algum perigo de gol assim que a bola subisse em direção da área, mas agora era tarde, o idiota do Edislon correu feliz para o meio do campo como se fosse o filho dele, a torcida urrava e eu fiquei sem álibi. Vi ainda os dez jogadores fazendo uma pirâmide de alegria sobre o corpo magro e ruim de Robertson, que levaram carregado para o meio do campo, como eu previa. Voltei ao círculo central sem nem mesmo apitar o gol, que apitava a si mesmo, dispensando meus serviços. Olhei ainda para o cronógrafo, calculando o que faltava de tempo, que era nada, apitei fraco o recomeço e no segundo passe ergui os dois braços para acabar com a agonia. Quando Robertson veio me cumprimentar com aquele sorriso cínico eu. Não sei. Disseram que eu acertei um soco no nariz e outro na boca, mas quem desmaiou fui eu. Acordei no vestiário, com quatro meganhas, dois dedos quebrados na mão direita e essas algemas, como se o culpado fosse eu. Se foi mesmo isso que dizem, estou com a consciência tranquila, porque o injusto não pode ser recompensado - é apenas uma questão moral.

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