O Globo - 13/01/2013
O caso da jovem de 23 anos estuprada
no mês passado por
um grupo de homens em
Nova Délhi, capital da Índia,
provocou o devido horror mundial.
Talvez pelos detalhes da rotina do cotidiano
em que ocorreu, tão familiar ao
cidadão urbano de qualquer parte do
mundo: a jovem voltava de uma sessão
de cinema (“As aventuras de Pi”); estava
acompanhada do companheiro
com quem casaria em fevereiro próximo;
e encontrava-se dentro de um ônibus
quando teve o corpo devassado
pelos seis atacantes, entre os quais o
motorista.
Como se sabe, depois de brutalizada,
foi espancada com barra de ferro e despejada
com o namorado perto de uma
via expressa da cidade. Não resistiu às
lesões e morreu treze dias depois.
A bestialidade do ato desencadeou
algo tão imprevisível para o Ocidente
quanto os surtos iniciais da chamada
Primavera Árabe, na Tunísia e no Egito:
a Índia saiu às ruas. Homens e mulheres,
jovens e adultos, autoridades e
anônimos passaram a exigir mudanças
na cultura de violência sexual do
país. Repita-se: homens, muitos, inúmeros
homens se juntaram às gigantescas
manifestações de protesto.
Paralelamente, foi sendo construído
por parte da mídia ocidental o retrato
de uma nação de hienas predatórias
onde o estupro seria a norma.
As estatísticas citadas são, sem dúvida,
eloquentes: em Nova Délhi uma
mulher é estuprada a cada 14 horas,
totalizando 625 casos somente em
2012. E apenas um em cada quatro
acusados foi julgado e condenado.
Só que esses números, quando
comparados a alguns dados referentes
à Inglaterra e aos Estados Unidos,
não são diferentes assim. A região
metropolitana de Nova Délhi tem cerca
de 18 milhões de habitantes. A população
da Inglaterra e do País de Gales
somados é 3,5 vezes maior, mas o
número de estupros supera em quatro
vezes o da capital indiana. Segundo
artigo publicado no “The Guardian”
pela pesquisadora Emer O’Toole,
da Universidade de Londres, eles somam
9.509 casos.
Como na Índia, também nos Estados
Unidos apenas um quarto dos casos
de estupro denunciados resulta
na prisão do acusado. É americano o
ex-deputado republicano Todd Akin,
que conseguiu se eleger seis vezes e
integrar a Comissão de Ciências do
Congresso montado em ideias medievais
sobre a condição feminina. Em
novembro último, ao tentar uma vaga
no Senado, defendeu sua oposição a
qualquer tipo de aborto com a afirmação
de que “os casos de gravidez
depois de um estupro são muito raros”.
Esclareceu: “Se for um estupro de
verdade, o corpo da mulher tenta por
todos os meios bloquear a gravidez.”
Cabe, portanto, um corte para a noite
de 11 de agosto do ano passado —
quatro meses antes do horror em Nova
Délhi. A cidade americana de Steubenville,
esquecida às margens do Rio
Ohio, preparava-se para um de seus
poucos folguedos anuais: a tradicional
comemoração do final do verão no Hemisfério
Norte, regada a festas simultâneas
em várias casas da localidade.
Com menos de 19 mil habitantes,
população equivalente à de Búzios fora
de temporada, a decadente Steubenville
já conheceu tempos mais
prósperos. Quatro décadas atrás,
quando portava o apelido de Sin City
(Cidade do Pecado), vivia da siderurgia,
da jogatina e da prostituição. Veio
o declínio da indústria e sobrou-lhe
como único orgulho o time local de
futebol americano. Tudo, em Steubenville,
gira em torno da equipe do
Big Red, que já abocanhou nove títulos
estaduais e foi finalista nacional
em 2006. Quem veste a camisa do time
é herói local. Virtualmente intocável.
Na noite daquele 11 de agosto, uma
adolescente de 16 anos, de uma cidade
vizinha, foi até Steubenville participar
da série de baladas. A partir daí,
fatos e boatos, informações sólidas e
acusações sem provas se misturam. O
que se sabe de concreto, até agora, é
que a jovem, totalmente embriagada
e inconsciente, tornou-se brinquedo
sexual nas mãos de um grupo de jovens
ligados ao time.
As informações recolhidas até agora
indicam que ela pode ter sido violentada
em três casas diferentes. Foi
carregada de uma a outra pelas canelas
e punhos, feito saco de batata. No
caminho da primeira para a segunda
festa, sempre inerte, também foi sodomizada
no banco traseiro do carro.
Ao final da noitada, foi depositada
sem maiores cerimônias no gramado
da casa em que mora.
Coube a uma frequentadora fuinha
de redes sociais fazer o papel desempenhado
de multidão indiana. Pôs a
boca no mundo. Alexandra Goddard,
de 45 anos, ex-moradora de Steubenville,
navegava pela internet quando
se deparou com posts no Twitter, vídeos
no YouTube e fotos no Instagram
que mostravam, em tempo real,
o que ocorria com a jovem.
A maior parte foi deletada no dia seguinte,
mas a blogueira conseguiu
capturar o que ainda restava da trilha
de vestígios deixada na rede — e
transformou-se em justiceira moral
do caso, atropelando a investigação
criminal. Apesar da apreensão de 15
celulares e 2 iPads, as autoridades locais
obtiveram escasso material testemunhal
da comunidade.
O caso permaneceu restrito aos
26,5 quilômetros quadrados de Steubenville
e ao blog de Goddard por
quatro longos meses. Só ganhou dimensão
nacional em dezembro, com
uma longa reportagem publicada no
“New York Times”, seguida da entrada
em cena do coletivo de hackers
Anonymous e outros grupos de ciberativistas,
que incendeiam a rede com
acusações nem sempre confiáveis. Já
estão sendo chamados de “terroristas”
e de ”ameaça à ordem pública”
pelas autoridades da cidade.
Apenas dois atletas do Big Red, ambos
de 16 anos, serão julgados por
uma corte juvenil no próximo dia 13
de fevereiro.
“Se você pudesse indiciar alguém
por não ser uma pessoa decente, muitos
seriam acusados por aquela noite.
Mas isso não é possível”, diz o chefe de
polícia local, Fred Abdalla, ao constatar
que nenhum jovem ou adulto presente
às festas teve a preocupação moral
de dizer “Peraí, isso não está certo”.
Como se vê, em matéria de cultura
do estupro, as fronteiras são bem
maiores do que a Índia.
Dorrit Harazim é jornalista
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