domingo, 13 de janeiro de 2013

Por que não publiquei Glauber - Ivan Pinheiro Machado

folha de são paulo

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Por que não publiquei Glauber
Rio, 1977
IVAN PINHEIRO MACHADONO INVERNO DE 1977, bem no começo da editora L&PM, recebemos uma correspondência que não trazia o nome do remetente. Eu tinha 24 anos e, editor principiante, havia mandado cartas pedindo livros para mais ou menos 20 intelectuais brasileiros "de peso".
Passados dois meses, ninguém havia respondido. O carteiro só trazia contas a pagar. Mas recebemos uma, aparentemente o primeiro retorno. Muito curioso, abri o envelope e fui direto à assinatura. Ilegível. Li o texto datilografado em duas páginas de papel A4 e, nas primeiras linhas, identifiquei um dos destinatários da nossa busca por livros novos.
A assinatura era de Glauber Rocha. Ele queria publicar a sua obra e mencionava "vários livros" e especialmente uma história do cinema.
Na carta de junho de 1977, Glauber escrevia:"minha 'História do Cinema' tem mil páginas [], é um livro original porque eu revelo entrevistas inéditas com cineastas do mundo todo e conto a História do ponto de vista de um cineasta que viveu por dentro da cozinha. [...] Conto a verdadeira história do Cinema Novo, 15 anos de política e cultura. Não existe bibliografia de cinema que preste no Brasil".
E encerrava assim: "Não quero enviar originais pelo Correio. Mandem alguém ou venham aqui". Através de amigos no Rio consegui o telefone dele. Liguei, ele mesmo atendeu e combinamos uma reunião dois dias depois no Rio.
Saí de Porto Alegre com chuva e frio e cheguei ao Rio sob um sol feérico que brilhava num céu sem nuvens. Deixei minha pequena bagagem no hotel e fui direto ao edifício na Lagoa.
Ao sair do elevador, senti um cheiro forte de maconha. Segui o rastro que estava no ar e cheguei ao apê 201, emprestado por um amigo psiquiatra a Glauber Rocha e a sua namorada, uma deslumbrante loura colombiana.
Ao entrar no apartamento com vista para a lagoa Rodrigo de Freitas, Glauber ofereceu-me uma poltrona, uma cerveja e começou um longo, brilhante e exaltado monólogo sobre sua obra como escritor e sobre o potencial cinematográfico que a história do Rio Grande do Sul possuía. Ele sugeria uma filmagem da Guerra dos Farrapos com Marlon Brando no papel do líder da revolução, Bento Gonçalves.
"Eu ligo pra ele e faço o convite. Ele me conhece. Vou propor uma participação na bilheteria." E sugeria ainda que Sônia Braga fosse Anita Garibaldi. "Ela nasceu para ser a Anita", disse. Por fim, mostrou-me dois calhamaços datilografados com cerca de 500 páginas cada um.
O primeiro era uma coletânea de "ensaios e observações filosóficas", e o segundo era um "romance épico" que se chamaria "Django", baseado na vida de João Goulart, o Jango. "Depois eu mostro a História do Cinema."
Eu observava perplexo aquela explosão verborrágica. Ele tinha uma fluência impressionante. Falava sobre o momento de abrandamento da ditadura, da genialidade de Golbery do Couto e Silva, o chefe do Gabinete Civil, que seria o "grande artífice do desmonte do regime", era "o gênio da raça", expressão que ele repetia sempre quando se referia ao Golbery e que acabou ficando célebre.
Depois de quatro horas ouvindo discursos, fui embora. Combinamos que eu retornaria no outro dia. Foi o que fiz. Lá chegando, tudo aconteceu como no dia anterior; mais uma sessão de discursos brilhantes. Ele falava, falava e, de tempos em tempos, fazia uma longa pausa arfando, exausto. Descansava um pouco e voltava a falar, falar.
A conversa (monólogo) acabou no começo da noite porque sua mulher lembrou que os dois tinham uma exibição especial de "Dona Flor e seus Dois Maridos", o filme de Bruno Barreto. Combinei de voltar no dia seguinte para acertar os detalhes do contrato e pegar os originais dos livros. Foi o que fiz.
Cheguei às 15h e toquei a campainha. A loura atendeu a porta e, sem me convidar para entrar, disse constrangida: "o Glauber não pode atender, mas manda dizer que desistiu de publicar os seus livros". E encerrou o assunto, fechando a porta na minha cara.
Fiquei ali parado por uns dois minutos tentando absorver aquele desfecho surreal. À noite voltei para Porto Alegre. Sem livro nenhum, mas pelo menos com esta curiosa história para contar.

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