Valor Econômico
Imagine, caro leitor, um idiota. Bebe três vodcas, sábado à noite. Raiando o dia, sai guiando pela avenida Paulista. Cones já demarcam a pista para a ciclofaixa, a ser ativada em uma hora. Faz ziguezague entre os cones. Não vê um ciclista na faixa e o atropela. Assustado, foge. Percebe que o braço decepado da vítima está no carro. Depois do que fez - beber, atropelar, fugir - o que é jogar o braço cortado no esgoto? Só uma etapa a mais na violência infligida ao ciclista. Mas isso impede um possível reimplante. Uma sucessão de pequenas infrações gera uma tragédia para a família do ciclista, pobre. Advogados do réu dirão que ele está traumatizado, que vai ajudar a vítima, que, enfim... Muitas palavras.
Imagine, leitor, um idiota. Antes de dar um show, compra um sinalizador, para a galera vibrar. Pede um de R$ 2. O vendedor pergunta onde vai usá-lo; "em lugar fechado, este não serve. Tenho um adequado, por R$ 70". O comprador acha caro: "Sei usar, não vai acontecer nada". Por R$ 68 de economia - mais um forro impróprio e a falta de saídas adequadas - morrerão esta noite 241 jovens. R$ 1 para cada três pessoas. R$ 0,30 por vida. Choca o contraste entre a morte às centenas e a banalidade - e até o baixo custo - das causas para tais mortes.
E cada morte se multiplica. Muitos dos 241 teriam filhos. Estes nunca nascerão. Há uma geração que nunca verá a luz do sol. E, porque morreram 241, centenas de seus próximos levarão o resto da existência sob um céu de chumbo, a alma pesada, sobreviventes - porque perderam um ser amado, e com ele os sonhos, o sonho de que fizessem faculdade, de que fossem felizes no amor, salvassem vidas como médicos, reduzissem a ignorância como professores, tivessem filhos, plantassem árvores, talvez escrevessem livros... O direito de sonhar é o direito de ter um futuro: difícil avançar na vida, quando já não se tem esperança. Tudo isso ceifado, por uma irresponsável economia.
Contravenções até pequenas podem ter efeitos letais
Como pode um valor tão pequeno carregar tanta capacidade letal? Se pensarmos em termos econômicos, altos investimentos, públicos e privados, na formação dos 241 foram destruídos pela irresponsabilidade de quem economizou no preço do sinalizador e de quem errou, por leviandade, na forração do teto da boate. O problema é que no Brasil essas histórias se repetem em fila. Sai de cena a boate, entra o atropelador. O roteiro é igual: uma infração à lei que parece ingênua, cometida por uma pessoa apenas leviana, irresponsável - mas que causa danos piores que um crime premeditado, doloso, que cometesse uma pessoa fria e impiedosa.
Na Justiça, ouviremos que os levianos eram pessoas de bem; ouviremos de sua fé e caridade, isso ajuda; em suma: o que aconteceu naquela fração de segundo é inexplicável, foi uma fatalidade, doutor, ele está sofrendo direto por isso.
E o argumento da defesa prevalecerá, à medida que passe o tempo e se faça o luto dos mortos, ou se esqueça a miséria a que foi condenado o rapaz que fazia rapel para limpar os vidros do Hospital das Clínicas. Visitas a ele, se prometidas, terão sido esquecidas. Ajudá-lo financeiramente será determinado pela Justiça, até para atenuar a pena prisional do réu, mas com o cuidado de não empobrecer este último nem enriquecer a pessoa que ele amputou. As posições sociais devem ser preservadas. Perder o braço não deve ser meio de ascensão social - ouviremos isso, sim. E uma "fatalidade" não deve arruinar a vida de um jovem estudante de... Psicologia; terrível a ironia do contraste entre a profissão e a atitude.
Mas esses episódios deveriam ensinar uma coisa: o sentido ético do respeito à lei. Se o motorista de sábado não bebesse demais, não jogasse no lixo parte de um ser humano, o faxineiro poderia reaver o braço. Sem a série de descuidos que houve na boate Kiss, duzentos e tantos jovens sairiam vivos da boate; teriam à frente, somados, 12 mil anos a viver. Pensei em distinguir o dano econômico, que é mensurável, e o dano humano, que não o é. Mas não é preciso. Porque, para cada dinheiro que pais e sociedade investiram nos mortos, houve também amor que estes receberam e deram. Contas econômicas e amorosas dirão a mesma coisa: uma destruição que raia o absurdo.
Está na hora de entendermos que o respeito à lei reduz custos econômicos, reduz sofrimento humano. Se isso não acontecer, o Brasil será o país, não do carnaval, mas do horror. Sabemos que há crimes por crueldade. Estamos avançando no conhecimento do crime de corrupção, que causa danos enormes. Mas ainda não assumimos que seguir as posturas de trânsito é tão importante como foi, na medicina do século XIX, os médicos começarem a lavar as mãos com água e sabão, a medida que talvez mais vidas salvou na história de sua profissão. Nosso arcabouço mental entende a criminalidade decorrente da maldade, da conspiração - atos que, pensamos nós, nunca cometeremos. Só que há atos mínimos que podem gerar efeitos devastadores. Os tribunais terão dificuldade em julgar esses casos. A defesa alegará que os réus devem ser punidos pelo ato, não pelas consequências: multe-se o motorista só por invadir na ciclofaixa. Mas foi isso o que o levou a mutilar a vítima! Precisamos despertar para a letalidade que a mera contravenção pode ter. Não adianta culpar o destino, a fatalidade, quando atos elementares de prudência fazem despencar a morte, reduzem enormemente os acidentes. Mas, para fazer isso, é preciso entender que a lei pode ser o que protege a vida, que aí está sua beleza, e que sem isso a vida se esvai às centenas. É preciso punir, sim, e é preciso educar.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail: rjanine@usp.br
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