O NOVO PAPA
ANÁLISE VATICANO
Igreja é tecido que se rasga e sempre se recompõe
A renúncia de Bento 16 representa o fim de uma instituição monárquica, como constituída desde a era medieval
Bento 16 fez o que todo chefe de Estado ou de empresa lúcido deveria fazer. O ato dele vai bem além da renúncia
A da igreja santa, católica e apostólica de nosso credo? Uma noção mística, o corpo de Cristo que a encabeça e na qual todos por sua vez creem, do papa ao mais simples fiel?
A renúncia de Bento 16 propôs, em primeiro lugar, a questão da unidade orgânica da igreja e incita a refletir sobre o lugar que cada um de seus membros deve ocupar.
A decisão é um gesto profético, porque não tem precedentes, mesmo que demos a ela uma interpretação primordialmente laica, um tanto convencional: ela faz ecoar a contradição patente entre o alongamento da expectativa de vida e o peso cada vez maior da carga pontifical.
Com isso, o lento envelhecimento do papa, que fazia parte da história do papado, já não é mais viável. Bento 16, assim, fez o que todo chefe de Estado ou de empresa lúcido deveria fazer.
Mas o ato que ele empreendeu vai bem além disso. É o fim de uma igreja monárquica, tal como constituída desde a era medieval.
É fato que o primeiro pontífice romano tomou por base as palavras de Cristo: "Tu és Pedro, e sobre essa pedra construirei minha igreja".Mas o sucessor era não mais que o bispo de Roma.
A primazia romana foi constituída como um corpo que cresce, por meio da criação de redes de comunidades cristãs dispersas, mais e mais distantes, mas sempre em contato com a de Roma.
Ela foi construída no pluralismo e com a consciência de diferenças superadas, tal como exprime a associação simbólica de Pedro e Paulo, duas figuras quase opostas, como cofundadoras.
Bento 16 poderia, portanto, ter se tornado um "bispo emérito" (de Roma) entre seus pares, e, ao que parece, era esse título que almejava.
O título que, por fim, reteve, o de papa emérito, traz à mente que a igreja se percebe, acima de tudo, como um corpo místico: um papa não se aposenta.
Investido de um carisma especial quando eleito, por intercessão do Espírito Santo, ele o preserva mesmo que abandone as funções.
Tudo isso criará jurisprudência, mas revela uma outra natureza da igreja: a carismática.
Mudará o relacionamento entre os fiéis e a instituição e, certamente, aproximará a Igreja Católica de outras igrejas protestantes e ortodoxas.
A Igreja Católica jamais foi uma monarquia como outras, nem uma estrutura monolítica de resistência a todo movimento, apesar do peso do aparelho eclesiástico, mais conhecido como Cúria Romana, que parece ter sido uma outra causa de renúncia para Bento 16. A igreja se desenvolveu como um tecido orgânico que se distende, ocasionalmente, se rasga, mas sempre se recompõe.
Essa recomposição acontece, desde são Paulo, por meio da articulação em rede de comunidades minoritárias, dispersas e diferentes.
Essa é uma constante na história da igreja, e a explosão das redes sociais em nossa era confere uma nova chance a isso -uma dimensão inédita e ainda mal controlada, mas que representa o verdadeiro potencial da igreja do século 21.
Fazer emergir afinidades, exigências e solidariedades novas, estimular as minorias criativas, para que superem as diferenças culturais e históricas intercontinentais, as discriminações entre homens e mulheres, religiosos e laicos -é esse o futuro da igreja, mas para isso é preciso que ela reinvente seu modo de funcionar.
Papa fala sobre misericórdia em bênção
Em seu primeiro Ângelus, Francisco quebra protocolos e diz a uma multidão que sentimento pode mudar o mundo
Pontífice fez piadas e, depois de celebração, cumprimentou fiéis, conversou com crianças e ganhou beijos no rosto
Em seu primeiro Ângelus (bênção dominical), o papa Francisco disse ontem que os católicos não devem se cansar de pedir perdão e que o sentimento de misericórdia pode mudar o mundo.
Ele falou de sua janela para cerca de 150 mil pessoas, de acordo com a Santa Sé. A praça de São Pedro ficou lotada, e milhares tiveram de assistir à bênção em telões em uma avenida do Vaticano.
"Misericórdia... esta palavra muda tudo. É o melhor que nós podemos sentir. Muda o mundo. Um pouco de misericórdia faz o mundo menos frio e mais justo", disse.
O papa comparou Deus a um pai misericordioso, que sempre tem paciência com seus filhos. "O Senhor não se cansa de perdoar. Somos nós que muitas vezes nos cansamos de pedir perdão."
Mais cedo, em missa no Vaticano, ele criticou a hipocrisia ao citar passagem bíblica em que Jesus salva uma adúltera do apedrejamento.
"Nós também somos um povo que, por um lado, quer sentir Jesus, mas, às vezes, gosta de bater nos outros, condenar os outros. E a mensagem de Jesus é essa: a misericórdia", afirmou.
Depois da missa, o papa voltou a quebrar o protocolo ao se postar diante da igreja para cumprimentar os fiéis, como um padre de paróquia. Ele se abaixou para conversar com crianças e ganhou alguns beijos no rosto.
No Ângelus, o argentino Jorge Mario Bergoglio voltou a se diferenciar do antecessor Bento 16 pelo tom informal e teve sua fala interrompida algumas vezes por aplausos.
Ele começou o discurso com "bom dia", saudou a multidão como "irmãos e irmãs" e fez piada ao citar um livro de teologia do cardeal liberal alemão Walter Kasper.
"Este livro me fez tão bem... mas não pensem que estou fazendo publicidade para os meus cardeais!", disse.
Francisco também fez um agrado aos italianos ao lembrar que escolheu o nome inédito na história da igreja inspirado em são Francisco de Assis, padroeiro da Itália.
"Isso reforça a minha ligação espiritual com esta terra, onde estão as origens da minha família", afirmou.
Por volta de 12h15 locais (8h15 em Brasília), o papa arrancou as últimas risadas ao se despedir do povo: "Bom domingo e... bom almoço!"
A missa de "posse" do papa ocorrerá amanhã, com a presença de chefes de Estado, entre eles Dilma Rousseff, que chegou ontem. Ela visitou a basílicas de santa Maria Maggiore (século 5º) e são Paulo Fora dos Muros (século 4º). Depois, jantou em um restaurante.
Ex-subordinado diz que Francisco mudará igreja
Padre coordena paróquia a qual Jorge Bergoglio visitava regularmente
"Ele é progressista sobretudo em questões relacionadas à imagem da igreja, aos gestos, à atitude", diz De Vedia
No sacerdócio desde 1991, De Vedia, 46, conviveu com o cardeal Bergoglio na condição de seu subordinado.
O padre coordena a paróquia da Villa 21, favela no sul de Buenos Aires que abriga aproximadamente 45 mil habitantes e onde Bergoglio fazia visitas regulares para acompanhamento dos fiéis e das obras sociais ali desenvolvidas.
"Ele é progressista sobretudo em questões relacionadas à imagem da igreja, aos gestos, à atitude", declarou De Vedia à Folha e a um diário italiano em seu escritório, contíguo à Capela da Virgem dos Milagres de Caacupé, uma das oito com que conta a favela.
Se é progressista quanto à imagem, Bergoglio é "clássico, mais até do que conservador", afirma o padre argentino, em temas cujo debate mobiliza a opinião pública em boa parte do planeta, como aborto, união homossexual e igualdade de gênero.
Embora defina Bergoglio como "clássico" em muitos temas, De Vedia diz também considerá-lo como "alguém muito aberto, que, por exemplo, repreendeu padres que negavam o batismo a filhos de divorciados".
Na opinião de De Vedia, o papa Francisco imprimirá mudanças e avanços no Vaticano, mas ele julga "ingênuo esperar algo mágico" de seu papado, já que a igreja obedece "aos tempos históricos, em que as mudanças são muito mais lentas do que se pode querer".
Além de estar atrelada ao ritmo do tempo histórico, a Igreja Católica também não se desassocia das conjunturas políticas, assinala.
"CONFUSÃO"
O religioso conta ter tido o apoio de Bergoglio para uma iniciativa na fronteira entre a política e religião.
"Certa vez, eu tive a ideia de instalar uma barraca missionária na praça Constitución (uma das principais da cidade de Buenos Aires)", diz o padre.
Acampamentos com barracas são recurso comum aos grupos de protesto na cidade, sendo alguns deles permanentes.
De Vedia diz que obteve o sinal verde de Bergoglio com a frase: "Vá em frente. É preciso criar confusão".
A interpretação que o padre oferece para a expressão "criar confusão" dita por Bergoglio é a de que "a igreja não tem que controlar as pessoas, tem de acompanhá-las".
Para De Vedia, a eleição do argentino como papa "corrobora a convicção e dá força internamente" aos que, como ele, têm em seu estilo pastoral "inclinação para viver em ambientes populares".
Quanto à "opção pelos pobres" enfatizada pelo papa, De Vedia acha que não deveria "ficar reduzida a alguns setores, mas sim se estender por toda a igreja".
Desafetos, papa e Cristina se reúnem hoje
SYLVIA COLOMBODE BUENOS AIRESA presidente argentina, Cristina Kirchner, será a primeira chefe de Estado a ter uma reunião com o papa Francisco, hoje, ao meio-dia (8h no Brasil), em Roma.O encontro é cercado de grande expectativa por parte do mundo político argentino porque o líder religioso mantém uma história de enfrentamentos e desencontros com o kirchnerismo.
O então cardeal Jorge Bergoglio foi um dos principais críticos das políticas econômicas de seu antecessor e marido, Néstor (1950-2010), a quem acusava por ser conivente com a desigualdade social no país.
Já com Cristina suas principais disputas ocorreram em razão da aprovação de algumas leis, como a do matrimônio gay, e pela grande influência que Bergoglio tinha sobre a oposição.
O então arcebispo de Buenos Aires fez críticas abertas a Cristina. O mais recente atrito entre os dois ocorreu por causa de uma tragédia de trem no ano passado, em que morreram 51 pessoas, e o governo foi acusado de omissão. Bergoglio declarou que era função do Estado esclarecer responsabilidades.
Em Buenos Aires, ontem, fiéis e turistas lotaram a Catedral Metropolitana, na Praça de Maio, onde o núncio apostólico, monsenhor Emil Paul Tscherrig, celebrou uma missa de ação de graças em homenagem ao novo papa.
A principal praça da capital será palco de uma grande festa amanhã. Um telão está sendo montado para a transmissão, ao vivo, da cerimônia de entronização do ex-cardeal da cidade. O dia será também feriado escolar. A partir de hoje, às 22h30, acontece uma vigília no local, que foi reservado para católicos.
O NOVO PAPA
Com papa latino, igreja se aproxima de fiéis nos EUA
Atualmente, 1 em cada 3 católicos no país tem origem hispânica; religião é seguida por 24% dos americanos
Catolicismo nos Estados Unidos está prestes a se tornar religião de língua espanhola, diz padre americano
E não só por causa de sua língua materna, o espanhol. Francisco é, na descrição de teólogos americanos, um papa para tempos de crise, que entende a pobreza e cria empatia com os mais carentes.
"Essa escolha fará uma tremenda diferença. Estamos prestes a virarmos, nos EUA, uma igreja cuja principal língua é o espanhol", resumiu à Folha o padre Raymond Kemp, professor de teologia e pesquisador do Centro Woodstock na Universidade de Georgetown.
"A coisa mais bacana deste papa, porém, é sua total identificação com os pobres", diz Kemp, para quem as declarações de Francisco sobre pobreza vão reverberar na Cúria e no rebanho em um momento de crise global. "Acho que as pessoas vão recebê-lo bem aonde quer que ele for nas Américas."
Hoje, 1 em cada 3 católicos dos EUA tem origem latina (entre a população geral, os latinos são apenas 15%).
Mais do que isso, são os latinos que renovam as fileiras da Igreja Católica nos EUA, alimentadas nos dois séculos anteriores pela imigração irlandesa e italiana. Levantamento do Centro Pew (o Censo não afere religião) aponta que eles já são 47% dos católicos de até 40 anos no país.
"Isso ainda é um retrato pontual, mas se as coisas seguirem como estão hoje, logo se consolidará como tendência", disse à Folha Jessica Martinez, pesquisadora do braço do Pew para religião.
Nesse sentido, Kemp afirma que "a mensagem que os cardeais mandam, com a eleição de Francisco, é para que prestem atenção à linguagem, à cultura, às pessoas".
Embora os católicos não sejam maioria nos EUA (são 24%), o país congrega 7% dos fieis da religião no planeta, o quarto maior contingente. Além disso, a Igreja dos EUA destaca-se como uma das maiores financiadoras do Vaticano.
Não à toa a mídia local e o próprio presidente Barack Obama apressaram-se em classificar o argentino Francisco como o primeiro "papa das Américas", e não o primeiro latino.
Mas o momento é de provação para a igreja no país desde que começaram a vir à tona, no início da década passada, casos de abuso sexual de crianças por sacerdotes.
O número de católicos que se declaram fortemente ligados à religião caiu para apenas 27%, o menor em quatro décadas, ressalta o Pew.
Por isso, a escolha de Francisco, fora da lista negra de papáveis acusados de encobrirem abusos, segundo associações de vítimas, foi considerada boa notícia nos EUA.
Os episódios são o principal problema hoje da Igreja Católica para 34% dos fiéis do país.
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