Após ação de teor racista e nazista na
Faculdade de Direito, UFMG forma comissão de investigação, mas admite
que prática é difícil de coibir e ocorre em muitas unidades. Alunos
relatam que houve outros casos este ano
Clarisse Souza e Patricia Giudice
Estado de Minas: 20/03/2013
O
regulamento geral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) proíbe
o trote, a direção da instituição prometeu tolerância zero no ano
passado, mas a realidade na universidade é bem diferente. Além dos
veteranos da Faculdade de Direito, que na semana passada submeteram
calouros a trote com conotações racistas e referências ao nazismo, a
prática de constranger novatos continua em muitas unidades. Alunos da
UFMG relataram que pelo menos mais três cursos já promoveram trotes este
ano e que outros planejam fazê-lo. E a própria direção da universidade
reconheceu ontem que o ocorrido na Faculdade de Direito não é caso
isolado e que é difícil controlar os estudantes.
“Todas as
unidades têm trotes, marcados pelas redes sociais, e muitos acontecem
até fora do câmpus. Eles fogem ao nosso controle”, admitiu a
vice-reitora da UFMG, Rocksane de Carvalho Norton. “Há um limite muito
tênue entre o constrangimento e a aceitação do ato voluntário de um
jovem, mas entendemos que qualquer um implica opressão”, acrescentou.
Ontem, a Faculdade de Direito montou uma comissão para investigar os
alunos que participaram do trote na instituição. Todas as informações
sobre os estudantes serão consideradas e a apuração vai extrapolar
aqueles que aparecem nas fotos, ou seja, todos que participaram do
planejamento do trote serão investigados e poderão ser punidos. “O trote
certamente envolveu um número grande de pessoas”, disse Rocksane. Nas
fotos, divulgadas por meio de rede social, uma jovem aparece pintada de
preto e carrega placa onde se lê “Caloura Chica da Silva” e um grupo de
estudantes faz saudação semelhante a dos nazistas ao lado de um calouro
amarrado a uma pilastra – um dos alunos pintou um bigode parecido ao do
ditador Adolf Hitler.
Segundo a vice-reitora, possivelmente os
jovens que estão nas fotos já foram identificados. Todos podem ser
penalizados com suspensão ou mesmo o desligamento do curso. “O que nos
assustou neste caso do direito foi ter acontecido nas dependências da
faculdade, com tom agressivo, fascista e machista.”
Trotes constantes
Além da própria direção da UFMG, estudantes ouvidos pelo Estado de
Minas relatam que os trotes continuam. Só este ano, segundo alunos, pelo
menos três turmas da Escola de Engenharia já desrespeitaram a regra que
proíbe trote dentro da universidade. Estudantes de outros dois cursos
afirmaram que trotes estavam programados para os próximos dias. Na turma
do 1° período do curso de engenharia de produção, alunos já foram
pintados, fantasiados e tiveram de levar o material escolar em sacos de
lixo. A caloura Bárbara Luísa Silva Mendes, de 18 anos, presenciou os
trotes. Ela conta que uma de suas maiores preocupações antes de entrar
na universidade era a possibilidade de ser vítima de atitudes violentas.
“Sempre tive medo, porque via o que era feito em outros cursos. Sou
muito sensível, choro fácil, e tinha receio de que fizessem alguma coisa
que eu não gostasse”.
Trotes também ocorreram no curso de
engenharia de minas. Estudantes do 1° período tiveram os sapatos
escondidos e houve batismo com cachaça, segundo a aluna Bruna Oliveira
Froes Canesso, de 19 anos. “Não fizeram nada comigo, porque eu disse que
não gosto das brincadeiras e eles respeitaram. Como o curso é composto
por uma maioria masculina, eles pegam pesado com os homens”, conta.
Também há informações de que os calouros da engenharia civil teriam sido
alvo de trote. Na turma do 1° período de engenharia ambiental, os
alunos já estão cientes da prática. “Ainda não teve trote, mas pelo que
vejo não vão pegar pesado”, acredita o calouro João Vitor Campos.
Estudantes da comunicação social também relataram que um trote estava
planejado para os próximos dias.
Campanha O
presidente do Diretório Acadêmico da Escola de Engenharia Renan Damazio
reconhece que não ha controle sobre os trotes. Ele diz que o diretório
realiza uma campanha no início de cada semestre com os alunos veteranos
numa tentativa de inibir a realização de brincadeiras de mau gosto
contra os calouros, mas que a organização é feita de forma independente
pelos estudantes do 2° período. “Não temos muito controle sobre isso,
assim como a escola também não tem. Esse é um problema que está em toda a
universidade”, observa.
Faculdade dividida
Tiago de Holanda
Nas
dependências da Faculdade de Direito da UFMG, é fácil encontrar pessoas
conversando sobre o trote feito na sexta-feira. O assunto provoca muitas
divergências na comunidade acadêmica, como se verificou na tarde de
ontem, na assembleia convocada pelo Centro Acadêmico Afonso Pena (Caap)
para discutir o tema. Cerca de 300 estudantes de diferentes cursos
lotaram um pátio no terceiro andar do prédio. A maioria dos que falaram
ao microfone repudia o que ocorreu, mas alguns consideram que tudo não
passou de brincadeira de mau gosto.
Quase todas as críticas
mencionaram apenas uma das duas fotos divulgadas ontem: aquela em que
uma caloura, com o corpo tingido de preto, tem uma corrente atando suas
mãos, puxada por um veterano, e uma placa em que se lê “caloura Chica da
Silva”, em referência à escrava mais célebre de Minas. “Pode parecer
uma brincadeira, mas não é. Racismo mata, estigmatiza”, disse Ana
Guedes, de 20 anos, estudante do quinto período de direito. Aluna do
curso de psicologia, Andressa de Araújo Moreira, de 25, sugeriu que os
veteranos envolvidos no incidente se retratassem. “Não foi apenas um
trote, mas sim um crime”, defendeu.
O único professor a discursar
foi Rodrigo Edenilson de Jesus, da Faculdade de Educação. “As fotos me
chocaram. Trata-se de discriminação e racismo”, afirmou. Nenhum dos
discursos foi aplaudido com unanimidade. Para mostrar que discordava,
parte da plateia não se manifestava. Estudante de direito, Fernando
Morais, de 22, defendeu os colegas que realizaram o trote e chegou a ser
vaiado. “Não acho razoável tratá-los como criminosos. Você pode ficar
ofendido, foi uma brincadeira de mau gosto. Mas não houve dolo”, alegou.
Depois da assembleia, grupos de estudantes continuaram a discutir em
frente ao prédio da faculdade. Um deles foi criticado aos berros por
colegas, ao falar, em entrevista a jornalistas, que um dos sinais de que
a faculdade não é racista é o fato de ser “um macaco” o símbolo da
Associação Atlética Acadêmica da instituição.
Medo
Amigo de veteranos que participaram do trote, Victor contou que eles
estão amedrontados com a notoriedade que o caso ganhou. “Eles queriam
falar aqui, mas sabem que seriam vaiados”, relatou. Uma estudante do
segundo período do curso, que não quis se manifestar, disse que viu os
trotes e conhece os envolvidos. “Tá todo mundo com medo de falar”,
confirmou. “As fotos são nojentas, mas foram divulgadas fora do
contexto.”
Presidente do Caap, Felipe Galo disse que os veteranos
envolvidos decidiram não se manifestar, por enquanto. Na assembleia,
ficou decidida a criação de um grupo de trabalho para promover
seminários sobre preconceito e um ato público em repúdio a trotes. O
Caap divulgou nota em que “repudia veementemente a atitude ocorrida, bem
como o assédio virtual que tem recaído sobre os protagonistas das
fotos”. Segundo a nota, o incidente foi uma “afronta a garantias
constitucionais, como a dignidade da pessoa humana”. O centro ainda
reconheceu “que sua omissão foi um erro”, ao permitir o trote
Grupos denunciam sexismo e preconceito
Alessandra Mello e Álvaro Fraga
Um dia
depois das denúncias de trote ofensivo praticado por alunos da Faculdade
de Direito da UFMG na sexta-feira, quando calouros foram vítimas de
atos racistas e de apologia ao nazismo, novas acusações de práticas
preconceituosas atribuídas a alunos da mais tradicional faculdade de
direito de Minas Gerais foram publicadas nas redes sociais. No Facebook,
entidades de defesa da diversidade sexual, de combate ao racismo e da
defesa dos direitos das mulheres afirmaram que ações preconceituosas são
frequentes na instituição de ensino. Também foi divulgado que um dos
estudantes fotografados ao fazer a tradicional saudação nazista com o
braço direito estendido, ao lado de um calouro amarrado a uma pilastra, é
fundador de uma organização de ultradireita. Tudo isso em meio ao clima
pesado vivido na faculdade, onde os estudantes fizeram uma assembleia
ontem para discutir o que fazer para impedir novas manifestações de
racismo, intolerância e preconceito.
Uma das denúncias de
preconceito contra as mulheres foi feita pelo Grupo Universitário em
Defesa da Diversidade Sexual (Gudds), um coletivo que reúne militantes
dos direitos humanos de diversas faculdades. O Gudds acusa a charanga da
Faculdade de Direito de entoar músicas sexistas e de palavreado
impublicável em todos os eventos, atacando alunas de outras faculdades
de direito de Belo Horizonte. “Vestibular que abre as pernas, Nova Lima é
a casa dela, é casa , é casa, é casa da cadela” , essa é uma das
estrofes de uma das músicas executadas pela charanga.
Batizada
de “Casa da Cadela”, a música é uma referência pejorativa e
preconceituosa às alunas do curso da Faculdade de Direito Milton Campos,
localizada em Nova Lima, Região Metropolitana de Belo Horizonte. O
preconceito contra as mulheres é recorrente nas letras da charanga. Uma
delas, de conteúdo impublicável, por causa das palavras de baixo calão,
ataca mulheres negras e gordas e menospreza estudantes das faculdades de
direito pagas, exaltando uma suposta superioridade dos alunos da UFMG.
A
reportagem tentou contato com integrantes da charanga, mas nenhum deles
quis falar. Um integrante do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), que
representa os alunos do direito da UFMG, e que não quis se identificar,
confirmou a execução de músicas consideradas preconceituosas e disse que
todos na faculdade conhecem as letras da charanga.
Ano passado,
essa e outras letras da banda foram alvo de nota de repúdio do Centro
Acadêmico da Psicologia, que denunciou o teor preconceituoso e até
agressivo das músicas. “Essa sua burrice não vai da pra exorcizar, paga,
PUC, PUC, paga””, diz uma música, enquanto outra ataca moralmente as
mulheres: “cadela da Milton campos, late, late, late que eu to
passando”. Integrante do Gudds, Thiago Coacci, mestrando em ciência
política da UFMG, disse que trotes preconceituosos, racistas e
homofóbicos são frequentes e que a reitoria já foi alertada pelo grupo.
“O que a gente quer não é uma punição pontual. O problema é mais grave,
queremos que a UFMG adote uma política ampla de combate ao
preconceito”, defende Thiago.
Intolerância “Eu
sou um cara estranho com uma arma, eu gosto de atirar em pessoas e
matar é divertido”. Esta frase, escrita em inglês, foi postada no
Twitter por estudante que participou do trote na Faculdade de Direito da
UFMG, apontado como fundador de um grupo de ultradireita. Também foram
divulgadas outros posts do universitário, que revelam um perfil com
tendências totalitárias e de intolerância contra minorias. Integrante do
CAAP confirmou que o aluno é conhecido por suas posições radicais.
Em
uma das denúncias publicadas no Facebook, o universitário aparece em
uma rede social como integrante do Movimento Pátria Nossa, definido por
ele como “um movimento nacionalista para brasileiros que amam o Brasil e
defendem a tradição, a família, a pátria e os bons costumes”. O grupo é
ligado à organização italiana de extrema direita Tuttadestra. Até
anteontem, o estudante e o Pátria Nossa tinham páginas no Facebook,
removidas depois que as denúncias de prática de racismo e de referências
ao nazismo no trote de sexta-feira foram publicadas.
Em outro
post, o jovem volta a falar sobre mortes. "A espécie humana é indigna de
vida. Se eu pudesse, escolheria cinco pessoas e deixaria o resto morrer
de fome". Há ainda textos contra homossexuais, feministas e
manifestações como a Marcha das Vadias. Imigrantes também não escaparam
de comentários.
Nenhum comentário:
Postar um comentário