Médicos podem ser comprados?
Não importa se é um jantar, uma viagem ou um pagamento de quatro dígitos. É assim que começam os conflitos de interesse em medicina e sempre haverá possibilidade de influência.
O tema, espinhoso para os médicos e subestimado pelos jornalistas, foi discutido durante uma conferência de jornalismo de saúde que participei na última semana em Boston (EUA).
No centro da discussão estavam dois jornalistas premiados em coberturas sobre conflitos de interesse (John Fauber, do "Milwaukee Journal Sentinel", e Peter Whoriskey, do "The Washington Post") e dois médicos que pesquisam a área --Adrianne Fugh-Berman (Georgetown University) e Jerry Avorn (Harvard Medical School).
Para eles, o trabalho da indústria é vender o produto, o tanto quanto podem, e maximizar os lucros. E uma das maneiras de fazer isso é por meio de relações financeiras com as várias partes interessadas (médicos, sociedades médicas ou escolas médicas).
"Embora isso possa ser bom para as companhias que fabricam medicamentos de droga ou aparelhos e equipamentos médicos, pode não funcionar para os pacientes", alertou Fauber.
Um exemplo corriqueiro: o médico indica um medicamento mais caro (fabricado por uma indústria com a qual tem alguma parceria) quando existem outras opções mais baratas no mercado.
Fauber e Whoriskey deram alguns conselhos aos jornalistas: estejam atentos às fontes médicas e aos eventos financiados pela indústria e recuse convites para viagens, cursos e prêmios patrocinados por ela. Afinal de contas, os jornalistas podem incorrer nos mesmos conflitos de interesse que afetam os médicos.
Já os médicos Fugh-Berman e Avorn falaram sobre grupos de vigilância em saúde (http://www.pharmedout.org/) e bancos de dados on-line (http://www.rxfacts.org) que podem subsidiar os jornalistas na divulgação de informações mais isentas.
Avorn lembrou, porém, que nem todos os médicos são "vendidos", e que pode haver bons estudos financiados pela indústria farmacêutica. "Estamos sob risco de não acreditar em nada, mesmo quando a pesquisa é válida."
Creio que o primeiro passo para avançarmos nessa discussão no Brasil seja a transparência de informações. Nisso, os EUA estão um passo à frente com a aprovação recente de uma lei que obriga os laboratórios e a indústria de dispositivos em saúde a tornarem públicos nomes dos médicos e valores que eles recebem nas atividades desenvolvidas para a indústria.
Isso, é claro, não os isenta do conflito. Há vários estudos mostrando que, ao revelar o conflito de interesse, os médicos se sentem ainda mais à vontade para continuar no jogo e aceitar de bom grato as benesses da indústria. Mas é o primeiro passo para que o protagonista desse debate, o paciente, fique mais bem informado sobre os interesses em jogo e possa tirar suas próprias conclusões na hora de escolher seu médico.
Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de "Experimentos e Experimentações". Escreve às quartas, no site.
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