sábado, 13 de abril de 2013

A vida entre relâmpagos - André di Bernardi Batista Mendes

O escritor e psicanalista Wesley Peres mostra talento e estilo contundente em seu novo romance, As pequenas mortes, uma história sem redenção 


André di Bernardi Batista Mendes

Estado de Minas: 13/04/2013 

As pequenas mortes, do psicanalista goiano Wesley Peres, acaba de chegar às livrarias. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2006 com o romance Casa entre vértebras, e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2008, neste novo livro Wesley, fazendo uso de um belo e eficaz manejo da linguagem, adentra num tema caro e recorrente à psicanálise: o corpo, com suas vertentes, cores e nuances de dor e prazer, claros e escuros, aleluias e desprazeres, gozos e tormentos.

Wesley dá voz ao estranho personagem Felipe Werle. Para este quase escritor, sexo e câncer são o que move o também músico, natural de Goiânia, para quem a ideia da doença (o câncer) como morte natural se alastra pela população depois da contaminação pelo césio 137, em 1987. Felipe vive uma vida angustiada, cheia de desejos proibidos, proibitivos. Cansado de tudo, da música, das coisas que o cercam, ele resolve exorcizar seus prazeres e suas obsessões – a música, as mulheres, a ideia de que fora contaminado pelo césio 137 – em um livro. Música, amor e a doença perseguem (e contaminam), assim, este espírito contundente e conturbado. Wesley redimensiona o conceito de morte, quando o signo passa a ter ares de estranhamento. Importa o tamanho de cada morte, quando ela chega, sempre, para tudo, para todos, de forma incontestável e de forma avassaladora.

Wesley deixa brechas para pequenas suposições. O personagem do livro tenta, de um modo tosco, enviesado, algum tipo de salvação, ele expurga, como se isso fosse possível, de uma maneira peculiar, as sujeiras do cotidiano, do dia a dia, do robusto tédio que não alivia. Mas são suposições, dentro de um universo amplo de possibilidades. A literatura carrega dentro de suas coisas, no seu arsenal de armas prontas, forças poderosas que abrangem obra/autor/leitor, num elo de luzes insuspeitas.

Basta saber que “pequenas mortes”, em francês, significa orgasmo? Por acaso ganha em estatura, torna-se mais bela a flor que porventura roubamos, aquela que exala um cheiro peculiar, dentre todas de um jardim? Não basta encontrar beleza nas coisas indecifráveis. O buraco fica bem mais embaixo, e está em todo lugar. É preciso mais tempo perante o intratável, diante de complexidades. A ignorância é enorme e é uma grande bobagem querermos, pretensiosamente, através de quaisquer meios, reeducar a alma. “Alma é um efeito do corpo, de suas desdobras, de suas descontinuidades bioquímicas, elétricas, sonoras.” Wesley faz pequenas reflexões sobre o homem. Para tanto, este bom escritor nos convida para entrarmos numa montanha-russa chamada Felipe Werle.

Sendo assim, Wesley acaba construindo, com mãos de anjo barroco, um personagem que não tem medo do que pode haver de profundo e que acata, aceita e segue o fluxo de um pensamento caudaloso ao escrever de forma agressiva, rápida, caótica, como pede a vida quando se vê e quando está prestes a surgimentos. O narrador não deixa espaço para o mais ou menos: “Preciso da velocidade de um pesadelo”.

Felipe Werle é um músico que produz música erudita eletroacústica. Nosso herói, um “paranoico-perverso”, vive na corda bamba de uma angústia renitente, vive intensamente seus traumas e se embrenha, corajosamente, nesta trama de desacertos. Wesley, desta forma, aponta a sua flecha feita de palavras em direção aos desmandos do mundo contemporâneo. Ele lança luzes sobre uma espécie de ausência avassaladora. Num labirinto de acontecimentos “normais”, diante da perversão, Wesley suspeita do óbvio: algo pode não estar dando tão certo nestas engrenagens. Dentro de um abismo cabem buracos e cavidades. Felipe Werle vive no turbilhão dos acontecimentos de uma vida singular, que atinge fundo: a morte de um irmão, o amor por Ana, sua colega de escola, temperado pelo conflito, apego e, ao mesmo tempo, desprezo. Felipe olha nos olhos das pequenas e grandes traições e leva consigo o leitor. Este sujeito vive dentro dos relâmpagos da realidade crua.

Dilemas e paradoxos Wesley, através de Felipe, busca redenções. Mas Deus é um duplo, é o “azul que não se vê”; é céu e é césio. São contundentes os questionamentos feitos pelo escritor goiano. Na base das dúvidas, o medo maior, da vida, dos dilemas, dos paradoxos. Esperança é palavra das melhores. Mas. “Deus não é um criador, mas um destruidor. Encontrou o mundo pronto e não se cansa de destruí-lo, de insuflar-lhe pequenas mortes em tudo e em cada coisa.” Não é fácil encontrar coragem para rejeitar uma espécie rara de fonte de onde supostamente nascem florezinhas azuis, a própria essência da luz de cada coisa. “Custa às pessoas admitirem que o que não acontece, acontece.”

A morte fica, assim, numa posição cômoda, diante, perto do meio-dia. Pelos meios-fios ela trança o seu bordado feito de breu e bronca, e nunca se sabe dessa luz indesejável. A morte, em todo caso, é a última estação, uma estação repleta da mais alta voltagem: o mistério. Não há conceito mais inacabado. Diante das perguntas, diante do medo, diante do místico, diante do mórbido que a negra palavra cria, inexiste o meio-termo. Não à toa, Wesley Peres abre o seu livro com as seguintes palavras: “Para todos os tipos de afeto, sobretudo os mais perturbadores”.

Contudo, vida e morte se beijam e se encontram a cada página do livro de Wesley Peres. E, como sabem os psicanalistas, certas pulsões chegam, nascem (de onde, de que Deus, ou deuses?) carregadas de uma existência tão densa quanto é denso o mais duro dos diamantes. O personagem de Wesley enxerga o que quer, e como quer. A libido comanda um exército imbatível, chamado pensamento e consciência. Felipe Werle enxerga as mulheres de forma inusitada, por partes, peitos, coxas, olhos, bocas de beijar. Cada parte, no entanto, carrega algo de sinistro, algo muito escondido. “O corpo administra-se em pequenas mortes, abisma-se de um modo organizado, o seu impulso à morte, impulso metacorporal, nele nem Deus interfere.”

A literatura, diante do inaceitável, torna tudo, pelo menos, apetecível. A vida sempre cala mais forte.


AS PEQUENAS MORTES
• De Wesley Peres
• Editora Rocco,
• 120 páginas, R$ 23,50

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