sábado, 13 de abril de 2013

Identidade culinária - Eduardo Tristão Girão‏

Tese de doutorado traça paralelo entre as comidas mineira e paranaense para mostrar como o discurso está ligado à valorização cultural, ao atrativo turístico e à memória regional 


Eduardo Tristão Girão

Estado de Minas: 13/04/2013 

Por que conseguimos imaginar tanto em torno da simples menção da comida baiana? Por que tantos pratos vêm à mente quando o assunto é culinária mineira e o mesmo não ocorre com os pratos típicos tocantinenses? Por que a comida paraense vem ganhando tanto destaque em relação à dos demais estados amazônicos? Muitos são os fatores que determinam a formação e a consolidação das identidades culinárias brasileiras ao longo do tempo. Enquanto alguns estados prosseguem como potências gastronômicas, outros continuam pouco reconhecidos como há décadas, lembrados pelos “vizinhos” por um único prato. Ou nem isso.

Para tentar compreender como isso ocorre, foi justamente uma belo-horizontina que se lançou à pesquisa, a cientista social Luciana Patrícia de Morais. Seu interesse pela comida enquanto elemento de discurso sobre memória e identidade surgiu durante a graduação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela manteve o foco durante o mestrado, no Departamento de História da instituição mineira, e, mais tarde, ao mudar-se para Curitiba (PR), iniciou os trabalhos que deram origem à tese de doutorado “Cada comida no seu tacho: ascensão das culinárias típicas regionais como produto turístico – O Guia Quatro Rodas Brasil e os casos de Minas Gerais e Paraná (1966-2000) defendida em 2011 na Universidade Federal do Paraná (UFPR).


“Para mim, ficou clara a diferença da relação do povo mineiro e do seu discurso sobre ser mineiro em relação ao paranaense. Todas essas características só permanecem porque encontram eco, ou seja, os mineiros compram essas ideias. É possível perceber a diferença na forma como a comida se torna objeto de discurso”, conta Luciana. Ela acredita que, se a partir da década de 1970 as culinárias regionais se anunciam como atrativo turístico, sua legitimação e afirmação como produto turístico se dão a partir de meados dos 1980, quando a percepção da comida regional passa a ser vinculada mais diretamente aos discursos identitários.


Para comprovar a tese, a cientista social começou analisando exemplares do jornal Estado de Minas e do jornal paranaense Gazeta do Povo, contemplando as edições completas de ambos entre 1970 e 1985 e, a partir desse período, restringindo-se aos seus respectivos cadernos de turismo. Resultado: se as referências à culinária regional no jornal do Paraná já não eram comuns, com o recorte feito pela pesquisadora tornaram-se ainda mais raros. “No Estado de Minas, esse assunto aparecia tanto que era difícil saber em que seção do jornal era mais frequente”, compara. Para reduzir esse desequilíbro, foi trazido para a análise o Guia Quatro Rodas Brasil.

Desenvolvimento O trabalho de investigação científica indicou que desde a segunda metade da década de 1960 a comida típica já tinha certa visibilidade no Guia Quatro Rodas Brasil, associada mais ao conceito de atrativo, no sentido de despertar a curiosidade do visitante. “Com o passar dos anos, percebe-se sua incorporação pelos cardápios dos restaurantes, revelando sua transformação em produto”, explica Luciana. Até 1985, o guia não apresentava a relação entre comidas típicas e estados ou regiões, nem outras informações específicas sobre os costumes locais. Nessa mesma década, afirma a pesquisadora, começaram a ser desenvolvidas políticas públicas para inventariar atrativos e enquadrar todo município como potencial destino turístico.


“Isso leva a inferir sobre a percepção das comidas regionais mais como exotismo a ser divulgado para os estrangeiros que como produto turístico motivador de visitação e de apreciação juntamente com outros aspectos culturais de cada região”, analisa. A partir de meados dos anos 1970 é que surgem, nessa publicação, citações a restaurantes típicos e, posteriormente, a pratos servidos nessas casas. “Aí, Minas Gerais tinha uma comida típica e o Paraná, somente o barreado”, acrescenta. Somente em 1985 aparece nas páginas do guia uma outra referência paranaense, a quirera da lapa, receita cuja origem costuma ser atribuída aos tropeiros.


Aspectos positivos são mais eleitos


A partir então dessa mudança no cenário brasileiro, verifica-se o aumento do número de restaurantes típicos, principalmente em cidades com vocação turística. “E muito mais em Minas Gerais que no Paraná. Em Curitiba, por exemplo, atualmente, só há um restaurante que se denomina paranaense”, observa Luciana Patrícia. No caso mineiro, é interessante constatar como os hábitos alimentares do Norte do estado só passaram a ser mais relacionados à identidade culinária de Minas a partir dos anos 1990. “Isso esconde outras facetas da nossa história e é característica dos processos de construção identitária. São eleitos apenas os aspectos considerados positivos. Por isso nos lembramos tanto de fazendas e mineração, por exemplo”, analisa ela.

A pesquisadora lembra que desde o século 19 tenta-se estabelecer uma identidade paranaense, começando pelo que ficou conhecido como “movimento paranista”. “Ele estava muito fundamentado na imigração europeia para o estado e principalmente os moradores de Curitiba e arredores é que se identificavam com ele. Até hoje, os moradores da capital paranaense falam do ser italiano ou alemão, mas sem saber de que região exatamente. Houve essa tentativa, mas ela não encontrou eco. Não houve consenso. Os paranaenses não encontraram e nem sei se querem encontrar uma identidade. Quando encontra eco, o discurso encontra legitimidade”, afirma.

MANCHAS Para o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor de livros de gastronomia e reflexões pertinentes sobre o tema no blog E-Boca Livre, faz mais sentido enxergar no mapa da cozinha brasileira “manchas culinárias descontínuas” do que as tradicionais linhas da divisão sociopolítica do país. “No lugar de estados, sugiro as manchas Amazônica, da Costa (do Ceará ao Espírito Santo), Recôncavo Baiano, do Brasil meridional (subdividida em pequi, mate e pinhão) e a Caipira (Minas Gerais, São Paulo e parte do Centro-Oeste). Chamo a atenção para uma diversidade natural que é apropriada pelas pessoas, segundo soluções criativas que variam no espaço. Veja, por exemplo, o pequi e o pequiá. Este já era cultivado há milênios pelos povos do Alto Xingu. A área do pequi é imensa, mas é apresentada de forma enganosa como ‘típica’ da culinária de Goiás. Não é verdade. Há em Minas, na Bahia, no Maranhão; e tem o pequiá no Pará”, diz ele.


três perguntas para...

Carlos Alberto Dória
doutor em sociologia pela Universidade de campinas (unicamp)


O que há de específico na formação do que se conhece como identidade culinária mineira em relação à de outros estados?

Sobretudo o senso de oportunidade do governo estadual, em especial no longo período que vai da ditadura militar até o governo Itamar Franco. Foi a época da criação da Embratur (1966), e o governo Aureliano Chaves soube promover Minas como destino turístico – esforço do qual faz parte, ainda que de modo não intencional, o livro Fogão de lenha (1977), de Maria Stella Libânio Christo. Depois, foi a vez da “política da broa de milho”. Tudo isso junto fez parecer que Minas era mesmo singular. A professora Monica Abdala analisou isso muito bem no seu livro Receita de mineiridade (2007). Mas, por mais que pareça uma coisa única, se procurarmos bem vamos encontrar processos semelhantes em outros estados, como a Bahia de Antonio Carlos Magalhães.

A formação das identidades culinárias estaduais no Brasil é algo ainda hoje relacionado a fatos do passado (tropeiros, imigração etc.). Quão estáticas são essas identidades? O que dita o seu surgimento e consolidação?


Os estados são unidades políticas e administrativas, não culinárias. O auge dos estados na formação da nação brasileira é a República Velha. O que temos, então, são resquícios daquele período anterior a 1930. Claro, uma realidade mantida viva por interesse da indústria hoteleira, que tem impulso especialmente depois de 1970. Cada estado, a partir de então, inventa ou reforça suas tradições, inclusive culinárias. Talvez a grande exceção seja São Paulo, cuja elite tem vergonha do passado caipira, como Monteiro Lobato denunciava. Os paulistas, para os quais a cultura dos imigrantes pesa muito, cultuam tradições italianas, japonesas, sírias, judaicas, chinesas e logo mais virão as bolivianas e peruanas. A imigração dá o tom do seu passado.

Atualmente, o que pode determinar mudanças numa identidade culinária brasileira específica? 


Como sugeri, a identidade culinária brasileira é mais um mito, uma tradição inventada do que uma realidade. Especialmente na época da globalização, quando o feijão preto que comemos é produzido na China. E tome-se a tapioca e o baião de dois, por exemplo: eles aparecem com 1,4% e 5,4% de consumo em Fortaleza (CE), respectivamente; a polenta, 4,1% em Porto Alegre e 0,3% em São Paulo. São dados de uma pesquisa sobre essa questão identitária, realizada nas regiões metropolitanas em 2007. Come-se mesmo é arroz, feijão, bife, ovo frito, macarrão em toda parte. Não é por acaso que os chefs de destaque tentam, desesperadamente, reinventar uma “cozinha brasileira renovada”, ou “cozinhas regionais”, como foi o esforço da aliança da Embratur com cozinheiros e o governo mineiro no último Madrid Fusión (evento ocorrido na Espanha, no início deste ano). Foi um esforço concentrado em prol do turismo, considerando a proximidade da Copa do Mundo. Os mitos nacionais unificadores, assim como os regionais, fazem falta num certo plano da cultura e dos negócios. Mas, como diria Carlos Drummond de Andrade: “Trata-se apenas de um antigo retrato na parede. E como dói para tanta gente”! 

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