O ESTADO DE S. PAULO - 13/04/2013
Cronista do Caderno 2 narra casos saborosos envolvendo ambos e diz: “Quero envelhecer como ela, de bem com a vida”
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
Sim, quero envelhecer
como ela. De
bem com a vida, de
bom humor. Escrevendo
com estilo,
elegância. Lygia está
sempre cuidando
de seus livros, a cada
reedição. Sem
desprezar os outros,
a Academia Paulista de Letras não seria
a mesma sem ela. Ela é riso do início ao
fim. É riso quando se atrapalha, quando se
esquece. É riso quando rememora seu ingresso
na Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco. “Éramos apenas seis mulheres.
Todas virgens”, acentua. Ela é riso
quando rememoraumepisódio passado na
Alemanha,20anosatrás.Lembracomdetalhes,
até imita a maneira como os alemães
pronunciavam nomes brasileiros sem o til.
Se já contei o episódio, reconto. Porque é
a prova de que Lygia é iluminada, transcendental.
Estávamos em Colônia, falando em
um centro cultural. Lygia, João Ubaldo,
Márcio Souza, eu. Não era uma fala com
tradução consecutiva (quando se diz algumas
frases e o intérprete traduz) e sim simultânea(
falamoseosintérpretes nascabines
vão traduzindo diretamente para os fones
de ouvidos), o que é melhor para se
concentrar, não se perder o fio da meada.
Lygia falava havia meia hora, quando a
plateia começou a retirar o fone do ouvido,
a sacudir, amexernosbotões.Achavamque
havia um problema técnico. A tradução tinha
sido interrompida. Ray-Gude Mertin,
nossa anjo da guarda, correu e descobriu
que a intérprete de Lygia tinha desmaiado
na cabine. Corre, corre, não havia substituta.
Os alemães não são tão eficientes. Foi
anunciado ao público que Lygia encerraria
sua fala dado o incidente. No entanto, a
plateia protestou. Exigiuqueela continuasse
a falar até o finalemportuguês mesmo.E
Lygia falou pormais meiahora, porque gosta
de falar, tem emoção e poesia naquela
voz musical. Ninguém entendia nada, mas
quando ela terminou, aplaudiram de pé.
Qual a magia? Qualo mistério? Seria aquela
aura que ela sempre carregou e que nos encanta
na Academia ou nos palcos deste
País?Deondeela tira tanta força, tanta poesia,
tanta dramaticidade, tanto humor?
Até pouco tempo atrás, passados os 80
anos, ela continuava a participar da Viagem
Literária da Secretaria de Cultura, de cidadeemcidade.
“Precisodo dinheirinho”, explicava.
Mais do que isso, é a paixão. Tendo
se aposentado como procuradora do Estado,
poralgumaquestão burocráticaoupolítica,
viu seu salário ser cortado radicalmente
pelo governador Mário Covas, certa época.
O dela e o de todos os procuradores.
Sempre viajou sem uma queixa, sem cansaço
do falar, viajar, dormir, e viajar e falar e
seguir uma semana inteira.
Certa vez,emBerlim, JoãoUbaldo Ribeiro
e eu saímos, fazendo o tour das papelariasembusca
de cadernetas e canetas. Voltamos
carregados, demos com Lygia. Ela
viu nossas compras e, ciumenta e umpouco
invejosa, (no bom sentido) pediu o endereço
e saiu imediatamente. Passou o
tempo, estava na hora de partirmos para
as palestra e nada de Lygia. Desesperados,
sem sabermos o que fazer, porque conhecemos
a distração de nossa amiga, não sabíamos
se íamos à policia ou o quê. Em
Berlim, sem falar alemão, onde estaria?
Eis que ela vira a esquina e chega sorridente.
Tinha se perdido, mas não deu conta.
Achou a papelaria fez as compras e andou,
andou, andou, até reencontrar o caminho,
conduzida porumsanto protetor.Nãodissemos
nada, embarcamos e, como sempre,
ela nos deu um banho ao falar.
Foi ela quem deu o apelido de Raynha, à
nossa Ray Gude Mertin saudosa. A cada livro
novo, ou reedição, Lygia leva um bocado
de exemplares à Academia e distribui
comdedicatórias afetuosas.Hámbomtempo
não faz mais sessão de autógrafos. Na
Academia, exige sempre um copo de bom
vinho tinto, antes da sessão. Nunca deixou
de fazer uma intervenção nas reuniões.
Sempre que me encontra, me saúda: Ignácio
de Loyola Fagundes Telles.
Em Aracaju, na última noite de uma bela
feira, onde havia de Osman Lins a Nélida
Piñon, de João Antonio a Antonio Torres,
ela veio comunicar que haveria um jantar
na casa do gerente do Banco do Brasil, um
dos patrocinadores. O homem tinha pedido
a ela que transmitisse o convite. Estávamos
cansados, mas deveríamos ir, por educaçãoe
cortesia. “Afinal,umgerentedebanco,
que se interessa por autores e livros e dá
umjantar,temde ser atendido”, disse ela.E
fomos. Na casa, Lygia e o gerente sumiram.
Logo depois, ela voltou, encantada. “Precisam
ver a biblioteca do homem. Tem todos
os meus livros. Tem todos os livros de todos
que estão falando aqui na semana.Tem
livros autografados de todos os escritores
importantes do Brasil.”
Acho que ele se chamava Carvalho, era
grande e gordo, com uma mulher gorda e
afetuosa. Ambos tomavam uma caixa de
cerveja por dia. E liam. Leitores contumazes,
muitas vezes viajavam para Recife, Salvador,
João Pessoa para ouvir uma palestra
ou para uma noite de autógrafos. O jantar
foi debaixo de mangueiras imensas, num
dos mais belos quintais que vi pelo Brasil.A
comida típica sergipana rodou sem cessar
até a alta madrugada quente de Aracaju.
“Não ganhamos dinheiro, mas comemos e
bebemos e conhecemos gente por este Brasil”,
disse Lygia. “Quer coisa melhor?”
Ela ri dos outros, mas ri dela também.
Tempos atrás, quebrou o fêmur, passou
um tempo no estaleiro e ao voltar se apoia
em uma bengala. Há pouco recebeu convite
para ir a Feira de Frankfurt em outubro,
quando o Brasil será o homenageado. Respondeu
ao Manoel da Costa Pinto, um dos
organizadores: “Não posso ir, quebrei o
fêmur.” Ri muito e acrescenta: “Sempre
dizia quebrei a perna, até que meumédico
meaconselhou: é mais elegante dizer, quebrei
o fêmur, dá mais status. Perna ou fêmur,
está difícil de andar, de viajar”.
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