CRÍTICA - SHOW
Caretice do HSBC não bastou para esterilizar show em que compositor é acompanhado por jovens com guitarras
"Abraçaço", o disco novo, é quase integralmente executado, a começar por "A Bossa Nova É Foda". Fica de fora apenas "Gayana", de Rogério Duarte. As canções recém-lançadas vêm entremeadas por uma felizaça seleção de músicas do repertório do compositor, como "Lindeza" (1991), "Triste Bahia" (1971), "Você Não Entende Nada" (1971), "Escapulário" (1975) e "Reconvexo" (1989).
Tive a felicidade de ver a estreia da turnê no Circo Voador, no Rio de Janeiro, o lugar certo para o disco certo. Não que este show seja para poucos ou apenas para público de espaços "alternativos".
O entusiasmo com que foi recebido na noite de quinta-feira (11), no HSBC Brasil, de São Paulo, mostrou que a recepção a essa fase de Caetano é mais ampla do que se poderia suspeitar.
"Abraçaço" é o último CD da trilogia iniciada com "Cê" (2006), disco de uma crueza "rock" que contrasta com o momento anterior. Depois veio "Zii e Zie" (2009).
A diferença do Circo é ser um ponto de encontro de uma juventude com a qual o compositor se religou --e que passou a cultuá-lo. Uma turma tipo 30 anos cantando todas as canções. O sucesso, aliás, do livro de poemas de Paulo Leminski parece ter alguma coisa a ver com isso.
O show carioca fez lembrar uma época em que se podia ver Caetano em pequenos teatros, o que se tornou praticamente impossível na era pós-Canecão, quando venceu o sistema da Babilônia: ingresso caro, mesa apertada, garçom de costeleta e um Black Label, por favor.
São Paulo não tem Circo Voador, mas tem a Choperia do Sesc Pompeia, onde Gil e Jorge Mautner foram ovacionados (mais um sinal) pela jovem guarda na semana passada. Alô, alô.
A caretice do HSBC não bastou, contudo, para esterilizar o show --mesmo com alguns pequenos deslizes do cantor, que errou letra e pareceu preocupado com a voz.
TRANSROCKS
Embora as aparências ainda possam enganar os incautos, os últimos discos não são, na realidade, "de rock". Caetano propôs a partícula "trans" para ressaltar o jeito híbrido ou furtivo dos arranjos e composições. São "transrocks", "transambas" ou "transfunks". Gêneros transexuais.
Em "Abraçaço" há até mesmo uma "transprotest song", pós-Vandré, intitulada "Um Comunista", homenagem tocante ao guerrilheiro baiano Carlos Marighella que revisita aquele mundo de utopias e trevas.
E o que dizer de "Parabéns"? Um dos pontos altos do disco e do show, transforma em música, sem tirar nem pôr, o texto de um e-mail de congratulações enviado pelo cineasta Mauro Lima: "Tudo mega bom, giga bom, tera bom. Uma alegria excelsa pra você no paraíso astral que começa. Hehehe".
Em sua coluna em "O Globo", José Miguel Wisnik sugeriu que essa fase do compositor se reveste de um "desilusionismo" poético que se traduz num mergulho no coração do niilismo --de onde pode reafirmar com mais potência algumas de suas questões essenciais.
É como se o autor, diz Wisnik, tivesse assumido uma espécie de heterônimo sem mudar o nome --ele que de fato pensou em lançar "Cê" como se fosse outro.
Essa ideia também faz pensar em "Recanto", o excelso disco composto e produzido por Caetano, mas cantado por esse "heterônimo" feminino chamado Gal Costa --que é levada, enfim, de volta ao futuro.
Parece também presidir essa quadra a sábia e inabalável liberdade que talvez só os homens velhos possam conhecer.
Inevitável, portanto, que se instaure no show, com renovado sentido, a dimensão do tempo, o trânsito pela espessura biográfica e artística desse homem de 70 anos, ali, na proa, acompanhado por moços com guitarras.
"Eu queria parar nesse instante de nunca parar", diz a letra da música "Quando o Galo Cantou".
Na canção-título, "Abraçaço", se ouve: "Meu destino eu não traço / Não desenho ou desfaço / O acaso é o grão-senhor / Tudo o que não deu certo / Eu sei que não tem conserto / Meu silêncio chorou chorou".
Impossível não se lembrar de "Épico", do "Araçá Azul", de 1973: "Destino eu faço não peço / Tenho direito ao avesso / Botei todos os fracassos / Nas paradas de sucessos".
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