sábado, 13 de abril de 2013

O RISO PARA DEMOLIR IDEOLOGIAS E TABUS


O ESTADO DE S.PAULO -13/04/2013

MOACIR AMÂNCIO

O motivo da arte literária de HowardJacobson é provocar o leitor, isto é, não permitir que este passe indiferente pelas páginas do seu grande romance A Questão Finkler. O recurso mais eficiente para isso é o humor que demole ideologias, presunções, suposições, ideias feitas,pensamentos e fantasias ocultas, tabus em geral, etc. Verve e o senso crítico inesgotáveis transformam a leitura numa experiência eletrizante. A trama é muito simples: um homem de meia-idade, Julian, sofre um assalto ao sair da casa de amigo sem Londres e a possível ladra, sim, a ladra, além de surrupiar celular e cartões de crédito, enfia-lhe um prego nos miolos com esta frase incompleta: “Seu Ju...” Poderia ser o nome da personagem ou a pronúncia inglesa para jew, judeu.

Como ele não era judeu, mas seus dois grandes amigos e dos quais se torna um êmulo obcecado, Libor e Finkler, eram, ele não consegue mais se livrar daquilo.Começa então a procurar significados para a palavra ou meia palavra, enveredando poruma crise de personalidade divertida e dilacerante. Julian era do tipo tão comum que se parecia com todo mundo. Sem nada melhor para fazer, emprega-se como sósia de personalidades diversas numa empresa e assim ganha a vida, após demissão da BBC, que então passa a odiar. Como também não tinha um caráter muito definido,se é que isso existe,a transferência foi quase imediata :na hipótese de que a assaltante o havia chamado de judeu, num momento em que a Europa vive nova onda de antissemitismo e o conflito entre Israel e os palestinosmaisa polêmica generalizadae cheia de equívocos da desinformação ou da manipulaçãose acirra, elecomeçaa explorar as facetas daquilo que pensa ser um judeu.

Julian busca estereótipos para captaruma suposta essência em seus amigos.Libor,nascido na então Checoslováquia, jornalista de fofocas hollywoodianas, com idade para ser pelo menos seu pai,um boa praça muito sofrido e generoso, e o cínico Finkler, parceiro de infância, filósofo da televisão, um tanto rico graças ao sucesso com seus livros de auto ajuda e que não perde a oportunidade para cutucar os melindresdosdemais –sobretudodos outrosjudeus. Ele,porexemplo,participade uma sociedade de judeus “mortificados”, que se opõem ao Estado de Israel, são laicos e praticam todo tipo de ridicularias.Umdeles furtaprodutosisraelensesdossupermercados, outro expõe na internet suas pesquisas para tentar reverter a circuncisão. Ninguém escapa do ridículo. Julian é um tanto ingênuo e assim, talvez contaminado pela atividade profissional, passa deummoment para outro a se considerar judeu, mas influenciado pelo que vira na internet fica em dúvida quanto à circuncisão, pois teme que isso não seja lá tão benéfico para sua vida sexual.Emmeioatrapalhadasgerais,deparasecomolabirinto da personalidadehumana indefinível e fugidia, impossível de ser delineada em termos claros ou lógicos.

Ele não percebe que esse é o mesmo dramados seus amigos e de todos os demais. Se judeus, ou “finklers”, como Julian pensa, no seureducionismomeio infantiloutantã,são resultado de suas circunstâncias, e se eles foramedemaneira intermitentecontinuam a ser agredidos, se reagem desta ou daquela maneira, bastaria detectar a especificidade das reações, por exemplo, para que fossem resolvidos na sua cabeça. Quer dizer, um imenso e imaginário problema que parece resolver o enigma da experiência humana. Sóque nãoresolve, apenas acrescenta novas dúvidas e interrogações. Como ele não tem personalidadeeosamigosjudeusteriampersonalidade de sobra, então sua saída só podia ser a que escolhera, torna-seumaesponja que lhe permite viver nele mesmo de modo vicário, sem nenhuma certeza, mas com todas as dúvidas próprias e alheias.


Não estamosdiantedeumlivro “inofensivo”. Jacobson jamais deixa, como disse, o leitor intacto. O riso que provoca é uma autoironia que envolve completamente o leitor nas emoções, no patético e nomuito que as personagens têm de patetas – o romance recupera a eficiência do humor “popular” e erudito, livre do gravíssimo perigo representado por esse freio da inteligência chamadocensuraouautocensura.Ouocarnavalé risonho e franco ou não é. A certa altura, o leitor pode perguntar de maneira mesquinha e nas águas do pseudocriticismo: mas o romancista não se prenderia de maneira demasiada aos fatos do dia, pondo em risco a durabilidade do seu romance? Entre várias respostas podemos escolher a seguinte:sea questãodomomentoéoantissemitismo, algo quecomeçouhá muitos séculos e continua no presente, não parece mesmo que tudo continuará igual no futuro, com judeus ou outra minoria? Quer dizer, não há saída desse túnel de equívocos, horrores e um monte de bobagens pelas quais as pessoas simplesmente sofrem no eterno jogo do ser e do não ser. Azar o nosso, judeus, cristãos,muçulmanos,ateusdessas religiões, de outras religiões e sem religiãonenhuma. Comespírito demolidor, esgrimindoparadoxos, oautorconseguerealizar a proeza de escrever 400 páginas, todas criativas, inspiradoras, provocadoramente incansáveis e provarqueoromance,gênero literário, continua vivo e eficaz,emcem páginas de Juan Rulfo (Pedro Páramo) ou em 800 páginas de Howard Jacobson.


MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR DE LITERATURA
HEBRAICADA USP E AUTOR DE ATA (REUNIÃO DE LIVROS
DE POEMAS, RECORD), E YONA E O ANDRÓGINO,
NOTAS SOBRE POESIA E CABALA (NANKIN/EDUSP)

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