domingo, 14 de abril de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Olhando pela fresta‏


Estado de Minas: 14/04/2013 


Estou olhando (por uma fresta) o que comem e como comem as pessoas sentadas no restaurante ao lado. Meu ponto de vista é do lado de cá: estou num restaurante que é separado de outro por um vidro fumê. No entanto, de metro em metro, tem uma fresta que me deixa ver, recortado, o que ocorre no restaurante ao lado. Pura bisbilhotice. Afinal, a crônica, às vezes, o que é senão olhar por um buraco de fechadura a vida pessoal e social? E, por este olhar, tomar a parte pelo todo. Por um detalhe, dar notícia do conjunto. Com todos os riscos. Sempre.

Onde estou? Vou me posicionar ante o leitor?

Como não achei lugar num restaurante que serve massas e saladas, além de outros pratos, fartamente, caí com minha mulher neste aqui e fico sabendo que tem um maître que, apesar de uruguaio, faz comidas gregas. Surpreendo-me vendo no cardápio: tem até o iogurte grego, que entrou na moda nos supermercados, mas aqui, garantem, não é industrial.

No princípio não me preocupei em saber o que estavam comendo atrás desse vidro fosco. Confortável nessa mesa, escolhi um risoto que tinha vários ingredientes extras. A mulher pediu um haddock, que veio maravilhoso, melhor até que meu risoto. Como ela se cuida, notei que comeu o peixe e os aspargos, poupando-se de comer as batatas, que, dizem, engordam.

Ia comendo meu saboroso risoto sem me dar conta que no restaurante ao lado, separado de mim, apenas por um vidro, transcorria mais um episódio da barbárie culinária. Antes não tivesse olhado pela fresta. Era outro mundo, outro cardápio, outra cultura. Como é que pode tanta diferença entre um vidro e outro? Coisas do shopping. Tem que agradar a todos.

Primeira diferença que percebo do lado de lá: jovens, muitos jovens. Sorridentes, inconscientes, movimentando-se sempre. E rindo. Mesas como aquelas de refeitório de internato.

Do lado de cá, onde estou, gente mais velha, famílias ao redor de mesas de até seis lugares. Este restaurante é especializado em vinhos. Penso: vai ver que a diferença entre um e outro deve ser o preço. Mas é mais do que isto: é uma diferença cultural que se concretiza no cardápio.

Por exemplo: nestes cincos centímetros em que cabem meus olhos, o que vejo?

Vejo uma voracidade juvenil. Um rapaz moreno, truculento, pega o seu hambúrguer, com aquele pão que mais parece uma muxiba, bota toda a carga de catchup no sanduíche e, não satisfeito, chupa gulosamente no plástico que restou de tempero. E ri. À sua frente, garrafas de refrigerantes com aquelas doses assassinas de açúcar (disfarçado). Seus colegas estão num jantar pantagruélico de calorias criminosas.

Aproveito e dou uma vasculhada com meu olhar indiscreto nas outras mesas do restaurante vizinho. Uma adolescente bota (saborosamente ) na boca uma colher de marshmallow. Aquela coisa pegajosa eleva-a ao paraíso. Se ela ouvisse Mozart, a sensação seria a mesma.

E dá-lhe, batata frita!

Meu Deus! Estamos no reino da batata frita. Dizem que foi uma descoberta na América, lá no Lago Titicaca. E que assim salvamos a Europa da fome. Se for verdade, agora trata-se de salvar jovens e velhos da gordura engordativa.

Os jovens que entrevejo do outro lado são gordos, gordos em progresso. Não é à toa que o governo e as televisões desencadearam essa campanha por uma alimentação menos daninha. Às vezes chego a pensar que foi o ditador da Coreia do Norte que inventou o fast food, que é mais danoso que qualquer bomba atômica.


>>  www.affonsoromano.com.br

Um comentário:

  1. Adoro A. R. de Sant`Anna! Adoro esse blog!Lembrei de Lygia F Telle, que faz 90 anos na sexta-feira, e queria deixar isto:Lygia Fagundes Telles: Completa 90 anos de sonho e inspiração!
    Realizei meu primeiro grande sonho ao conhecer pessoalmente a escritora Lygia Fagundes Telles. Eu que ainda não sabia por onde andavam algumas partes do meu ser, no entanto, vi diante de mim uma mulher inteira. Ela regia com amplos gestos palavras tão grandes. Enquadrava-se largamente em si mesma. Mas sua aura expandia. Uma mulher alta e generosa diante de uma plateia absorta em contemplação.
    Buscando por minhas metades, eu precisava absorvê-la, aprendê-la. E já havia começado esse aprendizado ao ler o que ela escrevia. Mas agora era diante da rutilante Lygia que eu precisava romper a minha pequena palavra. Sufocando a incômoda parte tímida, perguntei-lhe o que vem a ser a “inspiração”.
    - Inspiração? ela refletiu. Apagou-se brevemente para reacender ainda mais luminosa e, incorporando a própria palavra em questão, falou longamente sobre a inspiração... E depois ainda falou sobre o sonho – “é preciso acreditar no sonho!” E citou Sebastião da Gama: “ pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos, chegamos? não chegamos? Haja ou não frutos, pelo sonho é que vamos”. Inspiradíssima até o fim da frase. Em vez do ponto final ela sorria reticências. E gostava de falar e de responder as perguntas.
    Isso aconteceu em 1989, aqui mesmo em Botucatu. Muitos se lembrarão das cálidas presença- palavra da inseparável Lygia. Em dois breves dias, a escritora passou pelo Convívium, Brasil-Itália, Papirus. Sempre presentes em nossas livrarias, ficou a inspiração de Lygia em seus livros: As Meninas, Antes do Baile Verde, A disciplina do Amor (atualmente, seu livro preferido), Invenção e Memória, Conspiração de Nuvens, Passaporte para a China, entre outros.
    Verdadeiras peças de arte para quem quiser se completar.

    Solange Frigatto – s.frigatto@gmail.com
    (grande demais - desculpe!)

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