domingo, 14 de abril de 2013

Com todas as letras - Carlos Herculano Lopes


Relação feita a partir da escolha de especialistas identifica entre os maiores escritores Machado de Assis e Dalton Trevisan e consagra Grande sertão: veredas como o grande livro de nossa literatura

Carlos Herculano Lopes

Estado de Minas: 14/04/2013 




Ao longo de três semanas, com o objetivo de fazer um levantamento sobre o que de melhor a literatura brasileira produziu e tem produzido ao longo da história, nos campos da poesia e da ficção, o Estado de Minas entrou em contato com 50 intelectuais de vários estados e instituições ligadas à literatura, como universidades, revistas especializadas, cadernos de cultura de grandes jornais, centros de pesquisa e projetos literários e de incentivo à leitura. A eles foi pedido que indicassem, de acordo com suas preferências: a) os cinco melhores escritores vivos da literatura brasileira; b) os cinco melhores escritores da literatura brasileira de todos os tempos; c) os cinco melhores livros da literatura brasileira, ficção e poesia, de todos os tempos.

Como critério, optou-se por evitar o convite a escritores, candidatos naturais, para participar da pesquisa. Em alguns casos, como no campo das letras muitas vezes os ofícios se sobrepõem, alguns ensaístas, professores e jornalistas que participaram da escolha são também autores de obras de ficção e poesia, mas sempre com nítida primazia da atividade crítica ou de pesquisa sobre a da literatura de invenção.

O resultado, como todas as listas da mesma natureza, por um lado consagra o cânone, por outro revela interessantes surpresas, que mostram a dinâmica que perpassa o setor cultural. Mesmo as mais consagradas escolhas carregam a marca do seu tempo. Além disso, o resultado, como se vai conferir nesta edição, acaba por constituir um repertório variado, que vale por um projeto de leitura para quem busca conhecer a literatura brasileira.

Ao analisar os resultados da enquete, Letícia Malard, professora emérita de literatura da UFMG, aponta para três tendências. A primeira seria a de dar prioridade à prosa, uma vez que, dentre os cinco melhores escritores vivos, consta um poeta apenas, o maranhense Ferreira Gullar. A segunda tendência apontada pela especialista foi a de os jurados prestigiarem, nos primeiros cinco lugares, autores vivos muito idosos: o mais novo, o amazonense Milton Hatoum, tem 60 anos, os outros estão com mais de 80. E a terceira observação apontada por ela diz respeito ao fato de parte dos jurados não incluírem escritores vivos nem livros deles entre os melhores de todos os tempos, apesar da grande vitalidade e de nomes de primeira categoria na literatura brasileira atual.

Para o professor de literatura, romancista e crítico literário Silviano Santiago, que não participou da pesquisa mas teve seu nome citado entre os melhores da literatura brasileira contemporânea, não há como questionar esse tipo de lista, como não se questiona, no regime democrático, a vitória de político por sufrágio universal. “Poderia dizer, no entanto, que talvez tenha faltado paixão amorosa para colocar entre os melhores da literatura brasileira de todos os tempos nomes com o Mário e Oswald de Andrade, ao lado de José de Alencar. Talvez tivesse sido melhor substituir um segundo Graciliano, de Vidas secas, pelo comovente poema dramático Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto”, diz.

Ainda de acordo com Santiago, talvez, se lembrado “o fervor à sustança clássica no pós-modernismo”, Autran Dourado tivesse sido eleito, e é provável que também tenha faltado “a grita da arraia-miúda nacional” para conduzir Lima Barreto ou Cruz e Sousa ao pódio. “Talvez tenha pesado preconceito de gênero, para não se levar em conta um João do Rio ou Hilda Hilst, entre outros. A unaminidade pensa a literatura de modo inconsciente, simpático e feliz”, avalia.

Bruxo e vampiro Os escolhidos pela maioria de votos nas três categorias – melhor escritor brasileiro, melhor livro de todos os tempos e melhor escritor brasileiro vivo – consagram respectivamente Machado de Assis; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; e Dalton Trevisan. É um conjunto aparentemente heterogêneo, que vai de um escritor elegantemente clássico a um autor que se caracteriza pela secura extrema, passando pela obra mítica e barroca do escritor mineiro. De um século ao outro, não é exagero dizer que a centralidade da linguagem em Machado prenuncia o modernismo de Rosa.

Há um fio que foi puxado pelo próprio Dalton ao receber, no ano passado, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. O Vampiro de Curitiba escreveu em carta à direção da casa, referindo-se a Machado de Assis: “Ele nos incitou, o grande bruxo, no prazer secreto da leitura”. Rosa, de certa forma, foi um testemunho silencioso nessa conversa entre o vampiro e o bruxo. Conhecedor das manhas do diabo, ele sabia que o sentido não estava no passado nem se esgotaria no futuro. Na literatura, como na vida, o que há é travessia.

Melhores livros da literatura brasileira

• Grande sertão: veredas
Guimarães Rosa, 1956
• Memórias póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis, 1880
• Dom Casmurro
Machado de Assis, 1899
• Vidas secas
Graciliano Ramos, 1938
• São Bernardo
Graciliano Ramos, 1934

Melhores escritores brasileiros de todos os tempos

• Machado de Assis (1839-1908)
• Guimarães Rosa (1908-1967)
• Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
• Graciliano Ramos (1892-1953)
• Clarice Lispector (1920-1977)

Melhores escritores brasileiros vivos

• Dalton Trevisan (1925)
• Ferreira Gullar (1930)
• Lygia Fagundes Telles (1923)
• Milton Hatoum (1952)
l Rubem Fonseca (1925)


Num recanto, o mundo

João Paulo


No soneto que escreveu para a mulher, Carolina, Machado de Assis (1839-1908) definiu em um verso o trabalho de sua vida: “E num recanto pôs um mundo inteiro”. Nascido no Rio de Janeiro, cidade da qual não se afastou mais de 200 quilômetros, o escritor não apenas realizou a mais importante obra de nossas letras como alcançou um grau de universalidade único. Clássico na expressão, tudo em Machado parece ser atravessado pela ambiguidade. Talvez por isso, mais de um século depois de sua morte, ele não apenas pareça moderno como desafie a compreensão da crítica e alimente a admiração de leitores em todo o mundo. Um grande autor reflete seu tempo. Os gênios criam sua posteridade.

Todos os leitores brasileiros passam pela experiência de ler Machado de Assis no colégio. Muitas vezes, ao retornarem à leitura na maturidade, ficam impressionados. Esse senso de estranhamento e descoberta, no sentido metafórico, acompanhou a sociedade brasileira em sua capacidade de compreensão de nosso maior escritor. Sua época, como um adolescente, reconheceu no autor de Dom Casmurro os méritos da linguagem, da narração e do sentido psicológico. No entanto, à medida que o tempo corria, a leitura de Machado foi encontrando outros valores e sutilezas.

O retratista do Segundo Reinado foi também seu maior crítico e mais acurado intérprete de nossas mazelas. No que seria mais uma ambiguidade do escritor, o que pareceu a muitos certo distanciamento e alienação das questões sociais e políticas foi, na verdade, a invenção de um modo de expressão próprio, marcado pela ironia, originalidade e acurada leitura política, capaz de perceber o descompasso entre a realidade e as ideias que a sustentavam. Vivíamos com a carne escravista e patriarcal uma sociedade em que a liberdade só habitava a mente das elites.

O estilo do escritor é mais um exemplo da riqueza ambígua de sua presença em nossa cultura. Mesmo tendo se tornado um modelo de expressão, pela elegância e humor, o estilo machadiano parece negar o tempo todo sua própria origem. Mesmo se exprimindo prioritariamente pela ficção, tanto no romance como no conto, Machado nunca o fez por mero entretenimento. Sua prosa reflexiva deixava sempre no ar “certas perplexidades não resolvidas”, na expressão do crítico Antonio Candido.

Todos esses aspectos parecem se unir para dar conta do projeto do escritor. Machado, no seu arcaísmo aparente, sempre foi moderno; em seu classicismo perfeito, abriu espaço para o experimentalismo com a linguagem. Mas nada disso é mais importante que seu empenho em colocar em letra os grandes temas brasileiros e universais que compõem sua obra. E é exatamente o fato de não se prender às modas (inventando outra expressão a partir do molde clássico) e às demandas chinfrins de sua época (colocando em foco questões universais) que Machado de Assis garante o lugar de interesse que hoje desperta no mundo, como comprovam a admiração de nomes como Susan Sontag e Harold Bloom, entre outros.

Se o leitor do século 19 conheceu o estilista, o século 20 o filósofo e o psicólogo, ficou para o nosso tempo a grande tarefa de um olhar amplo sobre a obra do escritor. Seguindo a inspiração de Antonio Candido, as grandes provocações que emanam da obra machadiana talvez sejam a questão da identidade (e da loucura), acerca da relação entre o fato real e imaginado, sobre o sentido da ação no mundo, e em relação aos limites postos à realidade para a construção de uma sociedade mais justa e de homens mais livres. Machado de Assis tocou em todos esses temas, que parecem tão presentes no mundo de hoje, por meio de personagens como Brás Cubas, Capitu, Pestana e Bacamarte.

Machado é moderno por antecipação: pôs a linguagem acima do enredo, equilibrou imaginação e entendimento, criou uma narrativa em fractais, fez do diálogo irônico e do contato com o leitor um modo de expressão que antecipou seus pares europeus em matéria de técnica. O que é revolução na forma é ainda mais surpreendente na essência, sobretudo em seu caráter crítico das nossas usanças em política e organização social. O monarquista Machado de Assis foi nosso mais revolucionário adversário da alienação. E fez tudo isso sem sair do Rio de Janeiro. Num recanto, o mundo inteiro.



Maiores escritores brasileiros de todos os tempos(por ordem de votação)

1) Machado de Assis, Rio de Janeiro (1839-1908)
2) Guimarães Rosa, Minas Gerais (1908-1967)
3) Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais (1902-1987)
4) Graciliano Ramos, Alagoas (1892-1953)
5) Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, viveu
em Pernambuco e no Rio de Janeiro (1920-1977)
6) João Cabral de Melo Neto, Pernambuco (1920-1999)
7) Castro Alves, Bahia (1847-1891)
8) Gregório de Matos, Bahia (1636-1696)
9) Euclides da Cunha, Rio de Janeiro (1866-1909)
10) Cecília Meireles, Rio de Janeiro (1901-1964)
11) Caio Fernando Abreu, Rio Grande do Sul (1948-1996)
12) Erico Verissimo, Rio Grande do Sul (1905-1975)
13) Gonçalves Dias, Maranhão (1823-1864)
14) Lima Barreto, Rio de Janeiro (1881-1922)
15) Nelson Rodrigues, Pernambuco (1912-1980)
16) Oswald de Andrade, São Paulo (1890-1954)
17) Cruz e Sousa, Santa Catarina (1861-1898)
18) José de Alencar, Ceará (1829-1877)
19) Manuel Bandeira, Pernambuco (1886-1968)
20) Dalton Trevisan, Paraná (1925)
21) Autran Dourado, Minas Gerais (1926-2012)
22) Hilda Hilst, São Paulo (1930-2004)
23) Lúcio Cardoso, Minas Gerais (1913-1968)
24) João Ubaldo Ribeiro, Bahia (1941)
25) Jorge de Lima, Alagoas (1895-1953)
26) José Lins do Rego, Paraíba (1901-1957)
27) Lygia Fagundes Telles, São Paulo (1923)
28) Rubem Braga, Espírito Santo (1913-1990)
29) Sousândrade, Maranhão (1832-1902)
30) Carlos Pena Filho, Pernambuco (1929-1960)
31) Mário de Andrade, São Paulo (1893-1945)
32) Moacyr Scliar, Rio Grande do Sul (1937-2011)
33) Osman Lins, Pernambuco (1924-1978)
34) Rachel de Queirós, Ceará (1910-2003)
35) Rubem Fonseca, Minas Gerais (1925)
36) Vinicius de Moraes, Rio de Janeiro (1913-1980)
37) Dalcídio Jurandir, Pará (1909- 1979)
38) Hugo de Carvalho Ramos, Goiás (1895-1921)


Quem votou
Armando Antenore, redator-chefe da revista Bravo, SP; Audemaro Taranto, professor de literatura da PUC/MG; Afonso Borges, projeto Sempre um papo, MG; Aleilton Fonseca, professor de literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana, BA; Angelo Oswaldo, jornalista, membro da Academia Mineira de Letras, MG; Benjamin Abdala Jr., professor titular de literatura brasileira da USP, SP; Carlos Marcelo, editor-chefe do jornal Estado de Minas, MG; Cláudio Willer, jornalista e ensaísta, SP; Carlos Ribeiro, professor de jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, BA; Claudiney Ferreira, jornalista e gerente de audiovisual do Itaú Cultural, SP; Ésio Macedo Ribeiro, ensaísta e crítico literário, DF; Eneida Maria de Souza, professora emérita de literatura brasileira da UFMG; Edgard Murano, jornalista, editor da revista Metáfora, SP; Francisco Bosco, ensaísta e colunista de O Globo, RJ; Flávio Loureiro Chaves, professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS; Fernanda Coutinho, professora de literatura da Universidade Federal da Paraíba, PB; Ivety Walty, professora de literatura brasileira da PUC/MG; José Eduardo Gonçalves, Ofício da Palavra, MG; Jorge Pieiro, ensaísta e crítico literário, CE; João Paulo, editor de Cultura do Estado de Minas, MG; Jaime Prado Gouvêa, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, MG; Josélia Aguiar, jornalista e crítica literária, SP; Ligia Cademartori, doutora em teoria da literatura e ex-professora da Universidade de Brasília, DF; Lucília de Almeida Neves, professora dos cursos de pós-graduação em história e direitos humanos da Universidade de Brasília, DF; Luciana Vilas-Boas, jornalista e agente literária, RJ; Letícia Malard, professora emérita de literatura da UFMG; Leyla Perrone-Moisés, professora de literatura da Universidade de São Paulo, SP; Luci Collin, professora de literatura da Universidade Federal do Paraná, PR; Luis Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS; Lúcia Riff, agente literária, RJ; Márcia Marques de Morais, professora de literatura na PUC/MG; Maria Adélia Menegazzo, professora de teoria da literatura da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, MS; Nahima Maciel, do Correio Braziliense, DF; Ninfa Parreiras, professora de literatura da Estação das Letras/FNLIJ, RJ; Noemi Jaffe, crítica literária e professora de literatura da PUC/SP; Paulo Paniago, jornalista e professor de literatura da Universidade de Brasília, DF; Piero Eyben, professor de literatura da Universidade Federal de Brasília, DF; Paulo Goethe, do Diário de Pernambuco, PE; Raquel Naveira, professora de literatura na Universidade Anhembi-Murumbi, SP; Ronaldo Cagiano, jornalista e crítico literário, SP; Rinaldo de Fernandes, professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba, PB; Ruth Silviano Brandão, professora emérita da UFMG; Regina Zilberman, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS; Selma Caetano, curadora do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, SP; Sonia Torres, professora de literatura e língua portuguesa da Universidade Federal Fluminense, RJ; Suzana Vargas, produtora cultural da Estação das Letras, RJ; Suênio Campos de Lucena, ensaísta e crítico literário, BA; Sérgio de Sá, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, DF; Severino Francisco, do Correio Braziliense, DF; Wander Melo Miranda, professor de literatura da UFMG.

O sertão espiritual

Carlos Herculano Lopes

Momento único na literatura brasileira, no qual exercício estético e filosófico se mistura a uma genial recriação da linguagem e erudição, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo, foi publicado em 1956, ano dos mais profícuos para a literatura brasileira do século 20.

No romance, que colocou seu autor entre os grandes da literatura universal – e foi escolhido como o melhor romance brasileiro de todos os tempos –, um jagunço aposentado, Riobaldo Tatarana, narra a um ouvinte oculto, que o visita em sua fazenda, suas peripécias como ex-chefe de um bando de guerreiros que fez e aconteceu nos sertões de Minas Gerais, numa época não especificada, mas provavelmente nas primeiras décadas do século passado. Também se mostra, no correr da narrativa – e este é um dos seus maiores dramas –, obcecado pela existência ou não do diabo, por ele nomeado de várias maneiras.

Como pano de fundo, mola mestra que sustenta a história, o amor proibido, e nunca realizado, do narrador por outro jagunço, Reinaldo, por ele chamado de Diadorim. Personagem-chave dessa história trágica e épica, cujo desfecho, que encerra um grande segredo, só será conhecido nas últimas páginas, os dois ficaram se conhecendo por acaso, quando ainda eram crianças, e atravessaram o São Francisco numa pequena canoa, pilotada por outro menino.

“Carece de ter coragem, carece de ter muita coragem”, diz Diadorim a Riobaldo, amedrontado pela imensidão das águas que se ampliam aos seus olhos, quando iniciam a travessia. Desde então, até a derradeira batalha travada contra um grupo rival, num local denominado Paredão de Minas, que marcou também o final das aventuras de Riobaldo como jagunço, os dois tiveram os seus destinos ligados.

Na visão de Benedito Nunes, crítico literário paraense, Grande sertão: veredas ultrapassa o âmbito regional. “No drama do sertanejo ou do jagunço, irrompem os grandes problemas humanos – seja a luta do homem contra a natureza que o estimula e o abate ao mesmo tempo, seja o ímpeto do jagunço que se põe em armas para defender uma causa indefinível, adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu espírito do que pela necessidade de viver e de realizar seu destino”, escreveu.

Em Grande sertão: veredas se mesclam várias dimensões da arte e do conhecimento. É romance de aventuras e história feita de pura linguagem; expressão do mito em sua forma mais primitiva e reflexão filosófica profunda e erudita; narrativa de amor e painel histórico e sociológico que revela o Brasil profundo.

Para Walnice Nogueira Galvão, uma das mais importantes estudiosas da obra do escritor, Guimarães Rosa, com seu romance, conjuga as vertentes mais marcantes da literatura do período, o regionalismo e o espiritualismo, para criar uma síntese ainda insuperada em nossa história literária: “Um regionalismo com introspecção, um espiritualismo em roupagem sertaneja”.

Traduzido para diversas línguas, motivo de centenas de estudos acadêmicos, transformado em peças de teatro, filmes e minissérie de TV, Grande sertão: veredas, ainda que alguns insistam em afirmar o contrário, é também, sem dúvida, o grande livro já escrito na América Latina. Só por essas inexplicáveis razões, tão comuns no mundo das artes, Guimarães Rosa não foi ganhador do Prêmio Nobel de Literatura.

Dos 70 livros citados entre os
melhores de todos os tempos:

•  O século 20 domina, com 59 títulos

•  Um foi publicado no século 17: Crônica do viver baiano seiscentista, de Gregório de Matos

•  Seis foram publicados no século 19: Primeiros cantos, de Gonçalves Dias; O guesa errante, de Sousândrade; O ateneu, de Raul Pompéia; Espumas flutuantes, de Castro Alves; Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

•  Quatro foram publicados no século 21: O albatroz azul, de João Ubaldo Ribeiro; Catrâmbrias, de Evandro Affonso Ferreira; Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato; e Pelo fundo da agulha, de Antonio Torres (trilogia encerrada em 2006)

 
Escritores que tiveram mais de um livro
entre os melhores da literatura brasileira


Carlos Drummond de Andrade
•  5 (Rosa do povo, Claro enigma, Lição das coisas, Sentimento do mundo e Alguma poesia)

Clarice Lispector
•  5 (A paixão segundo GH, A hora da estrela, Perto do coração selvagem, A maçã no escuro e Laços de família)

Machado de Assis
•  4 (Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro,
Esaú e Jacó e Memorial de Aires)

Graciliano Ramos
•  4 (Vidas secas, São Bernardo, Memórias do Cárcere e Angústia)

Guimarães Rosa
•  3 (Grande sertão: veredas, Sagarana e Corpo de baile)


João Cabral de Melo Neto
•  3 (Educação pela pedra, O cão sem plumas
e Morte e vida severina)

Erico Verissimo
•  2 (O tempo e o vento e Incidente em Antares)

Hilda Hilst
n 2 (Rútilo nada e Tu não te moves de ti)

João Ubaldo Ribeiro
n 2 (Viva o povo brasileiro e O albatroz azul)

Jorge Amado
n 2 (Velhos marinheiros e Gabriela, cravo e canela)

Jorge de Lima

•  2 (A invenção de Orfeu e Poemas negros)

Manuel Bandeira
• 2 (Estrela da vida inteira e Estrela da manhã)


Os livros eleitos

1) Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Minas Gerais 2) Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Rio de Janeiro 3) Dom Casmurro, de Machado de Assis, Rio de Janeiro 4) Vidas secas, de Graciliano Ramos, Alagoas 5) São Bernardo, de Graciliano Ramos, Alagoas 6) A Paixão segundo GH, de Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, viveu em Pernambuco e no Rio de Janeiro 7) A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais 8) Macunaíma, de Mário de Andrade, São Paulo 9) Educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, Pernambuco 10) Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais 11) Os sertões, de Euclides da Cunha, Rio de Janeiro 12) A hora da estrela, de Clarice Lispector 13) Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais 14) O tempo e o vento, de Erico Verissimo, Rio Grande do Sul 15) A invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, Alagoas 16) Angústia, de Graciliano Ramos, Alagoas 17) Laços de família, de Clarice Lispector 18) Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, Pernambuco 19) Menina morta, de Cornélio Pena, Rio de Janeiro  20) Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, Rio de Janeiro 21) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, Minas Gerais 22) Avalovara, de Osman Lins, Pernambuco 23) Crônica do viver baiano seiscentista, de Gregório de Matos, Bahia 24) Memorial de Aires, de Machado de Assis, Rio de Janeiro 25) Rútilo nada, de Hilda Hilst, São Paulo 26) A invenção do mar, de Gerardo Mello Mourão, Rio de Janeiro 27) As meninas, de Lygia Fagundes Telles, São Paulo 28) Esaú e Jacó, de Machado de Assis, Rio de Janeiro 29) Espumas flutuantes, de Castro Alves, Bahia 30) Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, Alagoas 31) O ateneu, de Raul Pompéia, Rio de Janeiro
32) Os velhos marinheiros e a morte e a morte de Quincas Berro d’agua, de Jorge Amado, Bahia 33) Poema sujo, de Ferreira Gullar, Maranhão 34) Contos do imigrante, de Samuel Rawet (nascido na Polônia, viveu no Rio de Janeiro e Brasília) 35) Corpo de baile, de Guimarães Rosa, Minas Gerais 36) Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira, Pernambuco 37) Incidente em Antares, de Erico Verissimo, Rio Grande do Sul 38) Lição das coisas, de Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais 39) Menino de engenho, de José Lins do Rego, Paraíba 40) Obra reunida, de Campos de Carvalho, Minas Gerais 41) O guesa errante, de Sousândrade, Maranhão 42) O mez da grippe, de Valêncio Xavier, São Paulo 43) O quinze, de Rachel de Queirós, Ceará 44) Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector 45) Poemas negros, de Jorge de Lima, Alagoas 46) Primeiros cantos, de Gonçalves Dias, Maranhão 47) Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, Minas Gerais 48) Sinos da agonia, de Autran Dourado, Minas Gerais 49) Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Bahia 50) Catrâmbias, de Evandro Afonso Ferreira, Minas Gerais 51) Crônicas reunidas, de Rubem Braga, Espírito Santo 52) Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Minas Gerais 53) Eu, de Augusto dos Anjos, Paraíba 54) Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, Bahia 55) Galáxias, de Haroldo de Campos, São Paulo 56) Mação no escuro, de Clarice Lispector  57) O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião, Minas Gerais 58) Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres, Bahia 59) Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum, Amazonas 60) Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, Paraíba 61) Sagarana, de Guimarães Rosa, Minas Gerais 62) Estrela da manhã, de Manuel Bandeira, Pernambuco 63) Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, São Paulo 64) Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, São Paulo 65) O albatroz azul, de João Ubaldo Ribeiro, Bahia 66) O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, Pernambuco 67) O encontro marcado, de Fernando Sabino, Minas Gerais 68) Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, São Paulo 69) Toda poesia, de Paulo Leminski, Paraná 70) Tu, não te moves de ti, de Hilda Hilst, São Paulo


A lâmina do vampiro

Carlos Marcelo

O reservado Dalton Trevisan, em foto rara, da década de 1970, feita para reportagem da revista O Cruzeiro (O Cruzeiro/Arquivo EM)
O reservado Dalton Trevisan, em foto rara, da década de 1970, feita para reportagem da revista O Cruzeiro
– Não fale, amor. Cada palavra, um beijo a menos.

Dalton Trevisan não é homem de floreios ou digressões. Maneja frases, remove adjetivos, arranca verbos, insere vírgulas com destreza de cirurgião. Revolve a nervura da escrita até chegar à carne e ao osso. Aí ele não hesita; perfura. Médico, não. Monstro.

A escolha de Trevisan como o mais importante escritor brasileiro da atualidade pode surpreender os que acompanham a (tentativa de) sobrevivência da literatura no mundo das celebridades. Afinal, o curitibano não está nas redes sociais, nunca foi à Flip, não promove noites de autógrafos nem dá entrevistas. Ao contrário do comportamento ambíguo de Rubem Fonseca, convenientemente arredio apenas no Brasil, Dalton não se expõe em lugar algum. Preserva a própria imagem, desvia as luzes para os livros. A postura foi destacada pelos jurados do Prêmio Camões, que assim justificaram a escolha de Trevisan para receber em 2012 a mais importante premiação da língua portuguesa: “Ele fez uma opção radical pela literatura enquanto arte da palavra”.

Radicalidade e arte caminham juntas há décadas na obra do Vampiro de Curitiba, alcunha que nunca fez questão de renegar – ao contrário, até a cultua, com ajuda das ilustrações de Poty, onipresentes nas edições de sua casa literária, a Record. Personagem mítico da “cidade verde” (até há pouco tempo saudada como modelo de desenvolvimento urbano e qualidade de vida), avança contra o seu habitat, revestido pela autoridade só conferida pela íntima convivência: “Cinquenta metros quadrados de verde por pessoa/ de que te servem/ se uma em duas vale por três chatos? (…) não Curitiba não é uma festa/ os dias da ira nas ruas vêm aí” (“Em busca de Curitiba Perdida”).

Os textos longos sobre a capital paranaense, alguns em tom apocalíptico, são exceção. Usualmente o escritor não utiliza mais do que três páginas para engendrar obras-primas como o conto “Uma vela para Dario”, de
Cemitério de elefantes (1964). Uma década antes de Chico Buarque erguer a sua Construção, Trevisan descreve a indiferença coletiva diante da morte de um transeunte (e a pilhagem do cadáver) na rua de uma grande cidade: “Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso (…). Apenas um homem morto e a multidão se espalha”. Não há tempo nem para carpideiras nem para elegias: a vida segue e atropela quem fica pelo caminho, adverte o escritor. Como percebeu o crítico e poeta José Paulo Paes (1926-1988), a literatura de Trevisan é “arte impiedosa, mas não desumana”, baseada na “presentificação do assombro de viver”.
*
Na hora de assinar, todo soberbo o velhote, no seu oclinho torto:
– O meu nome, qual é? Quem mesmo sou eu?
*
Desilusão e desconcerto são as engrenagens que movem a prosa elíptica de Trevisan. Ele também costuma recorrer ao diminutivo em cenas de extrema violência (“Não com o facão, paizinho”) para amplificar o grito oculto nas casas de família. Dispensa verbos (“Agora feliz numa casinha de madeira no Cristo-Rei”, em “A guerra conjugal”, outra obra-prima, adaptada para o cinema em 1975 por Joaquim Pedro de Andrade) e exerce a síntese ao extremo nas narrativas mais recentes: duas, no máximo três frases. Haicais nada “poéticos”, que perturbam em vez de enlevar:
*
A velhinha meio cega, trêmula e desdentada:
– Assim que ele morra eu começo a viver.
*
Ao expor a brutalidade infiltrada entre quatro paredes, a temática de Trevisan tangencia a obra de outro gigante do século 20, Nelson Rodrigues. Mas, se no dramaturgo o trágico e o patético se misturam, no contista não há aceno para a farsa. Aqui a escrita é de uma faca só lâmina. Urge. Arde. Sangra.


Os maiores escritores vivos

1) Dalton Trevisan, Paraná (1925)
2) Ferreira Gullar, Maranhão (1930)
3) Lygia Fagundes Telles, São Paulo (1923)
4) Milton Hatoum, Amazonas (1952)
5) Rubem Fonseca, Minas Gerais (1925)
6) João Ubaldo Ribeiro, Bahia (1941)
7) Manoel de Barros, Mato Grosso (1916)
8) Ariano Suassuna, Paraíba (1927)
9) Raduan Nassar, São Paulo (1935)
10) Adélia Prado, Minas Gerais (1935)
11) Sérgio Sant’Anna, Rio de Janeiro (1941)
12) Luiz Ruffato, Minas Gerais (1961)
13) Augusto de Campos, São Paulo (1931)
14) Bernardo Carvalho, Rio de Janeiro (1960)
15) Luis F. Verissimo, Rio Grande do Sul (1936)
16) João Gilberto Noll, Rio Grande do Sul (1946)
17) Nélida Piñon, Rio de Janeiro (1937)
18) Cristóvão Tezza, Santa Catarina (1952)
19) Silviano Santiago, Minas Gerais (1936)
20) Affonso R. de Sant’Anna, Minas Gerais (1937)
21) Paulo Henriques Britto, Rio de Janeiro (1951)
22) Alberto Mussa, Rio de Janeiro (1961)
23) Armando Freitas Filho, Rio de Janeiro (1940)
24) Carlos Heitor Cony, Rio de Janeiro (1926)
25) Evandro Afonso Ferreira, Minas Gerais (1945)
26) Glauco Mattoso, São Paulo ( 1951)
27) Ignácio de Loyola Brandão, São Paulo (1936)
28) Rui Mourão, Minas Gerais (1929)
29) Angela Lago, Minas Gerais (1945)
30) Edney Silvestre, Rio de Janeiro (1950)
31) Antonio Torres, Bahia ( 1940)
32) Chico Buarque, Rio de Janeiro (1944)
33) Francisco Alvim, Minas Gerais (1938)
34) Francisco Azevedo, Rio de Janeiro (1951)
35) Luiz Vilela, Minas Gerais (1942)
36) Lya Luft, Rio Grande do Sul (1938)
37) Ana Miranda, Ceará (1951)
38) João Almino, Rio Grande do Norte (1950)
39) Raimundo Carrero, Pernambuco (1947)
40) Zulmira Ribeiro Tavares, São Paulo (1930)
41) Antonio Cícero, Rio de Janeiro (1945)
42) Ana Martins Marques, Minas Gerais (1977)
43) Beatriz Bracher, São Paulo (1961)
44) Cintia Moscovich, Rio Grande do Sul (1958)
45) Maria Esther Maciel, Minas Gerais (1963)
46) Miguel Sanches Neto, Paraná (1965)
47) Paulo Coelho, Rio de Janeiro (1947)
48) Reinaldo de Moraes, São Paulo (1950)
49) Ruth Rocha, São Paulo (1931)
50) Ruy Espinheira Filho, Bahia (1942)
51) Sebastião Nunes, Minas Gerais (1938)

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