domingo, 14 de abril de 2013

Após quase 1 ano, Comissão da Verdade é alvo de críticas

folha de sõa paulo


Membros do grupo temem frustração com resultado final das investigações
Segundo essas análises, desafio de reconstituir fatos de décadas atrás foi ampliado por erros conceituais e de gestão
JOÃO CARLOS MAGALHÃESMATHEUS LEITÃODE BRASÍLIAA Comissão Nacional da Verdade aproxima-se da metade do seu prazo de funcionamento sem ter revelado nenhuma novidade relevante sobre a ditadura militar (1964-1985) e sob dúvidas se vai detalhar todas as violações aos direitos humanos no regime.
Ouvidos pela Folha sob condição de anonimato, integrantes da própria comissão, da cúpula do governo e de comitês da sociedade civil se dizem céticos.
Para eles, a comissão, que encerra os trabalhos em maio de 2014, talvez esclareça só alguns casos, sem resolver a principal incógnita: quem, e a mando de que oficial, foi responsável por cada uma das mortes, torturas e desaparecimentos --devido à Lei da Anistia, não pode haver punição a essas pessoas.
A reconstituição de fatos ocorridos há décadas foi dificultado por erros conceituais e de gestão, dizem os críticos.
Eles acham, por exemplo, que o grupo errou ao adotar uma coordenação rotativa, o que faz as determinações mudarem de acordo com as convicções do chefe da vez --antes do atual, Paulo Sérgio Pinheiro, ocuparam a função Gilson Dipp e Claudio Fonteles.
Outro problema apontado é que o grupo ainda não aproveitou o que o próprio governo já produziu sobre a ditadura, como papéis da Comissão da Anistia usados até aqui apenas pontualmente.
O caso de maior evidência até agora, o do deputado Rubens Paiva, ganhou força por novidades surgidas a partir de documentos entregues à polícia do Rio Grande do Sul e revelados pela imprensa.
O Estado já reconheceu responsabilidade pela morte de Rubens Paiva, mas os culpados e o que ocorreu com o corpo ainda são um mistério.
Não houve avanço em outros grandes casos, como a Guerrilha do Araguaia o atentado no Riocentro.
Mas o ponto mais polêmico internamente é a divulgação dos trabalhos. Por enquanto, vence a maioria, encabeçada por Pinheiro, para quem a comissão deveria trabalhar em silêncio e apresentar um relatório com suas conclusões daqui a um ano.
De outro lado estão Fonteles e Rosa Cardoso, para quem o grupo também deveria produzir ampla discussão pública sobre a ditadura.
Além disso, membros do grupo afirmam que os trabalhos são prejudicados pelas ausências de Dipp, doente há meses, e pela falta de dedicação dos sete integrantes. Dizem, por exemplo, que José Paulo Cavalcanti não estaria comprometido com a comissão. Ele nega.

    Leia principais trechos da entrevista de Paulo Sérgio Pinheiro


    MATHEUS LEITÃO
    JOÃO CARLOS MAGALHÃES
    DE BRASÍLIA

    Leia os principais trechos da entrevista com o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, concedida na última quarta-feira.
    Sergio Lima/Folhapress
    O atual coordenador da Comissão da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, durante entrevista em seu gabinete em Brasília
    O atual coordenador da Comissão da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, durante entrevista em seu gabinete em Brasília
    Folha - Qual o balanço sobre o que foi feito em quase um ano de trabalho? Quais as principais conquistas?
    Paulo Sérgio Pinheiro - [É preciso] levar em conta que a Comissão Nacional da Verdade tem dois anos. O resultado fundamental da comissão é o relatório. Estamos escalados até maio de 2014. É a única comissão da verdade funcionando no século 21.
    Vários meses foram gastos para compor a equipe. No começo éramos seis e hoje somos 60. Então, em termos da constituição da comissão, começamos o 'take off' [decolagem].
    Há uma centralidade básica do que está na lei, que é a questão dos mortos e desaparecidos. Nós temos por mandato completar o reexame dos laudos. Temos 14 grupos de trabalho [em andamento], tomamos depoimentos. Em audiências públicas foram 131 vítimas da repressão. Nós temos áreas dos depoimentos dos perpetuadores das violações dos direitos humanos e das vítimas.
    A finalização da digitalização, que permitirá fazer cruzamentos, das 16 milhões de páginas no Arquivo Nacional. Aprofundamos a identificação de arquivos de 250 departamentos de informações em toda estrutura federal e estadual.
    Para aonde eu olhe, eu acho que apresentaremos um balanço de um ano positivo, como a revisão da certidão de óbito de Vladimir Herzog. Abriu um precedente. Os nossos colegas conseguiram 44 casos de suicídios que serão revistos. Estão em curso.
    Foi uma decisão da Justiça por insistência da família.
    Provocada por nós. Não foi o juiz que tomou a decisão inspirado pelo Espírito Santo. A família pediu, mas a argumentação é nossa. Considerando 30 anos, foi um feito. Temos compartilhado com a imprensa, como é o caso do deputado Rubens Paiva, para acabar com as histórias da carochinha.
    Mas esses documentos foram encontrados pela imprensa ou pela Comissão da Verdade?
    Por nós. Não estamos em competição com a imprensa. Toda contribuição da imprensa é muito bem-vinda.
    A comissão vai ser capaz de esclarecer as graves violações? O trabalho está adiantado, atrasado?
    Quem vai avaliar se estamos atrasados, adiantados, não somos nós. É claro que os julgamentos podem ser feitos. Nenhuma comissão da verdade, na metade, tinha revelações. Somos uma comissão da verdade em um contexto extremamente específico. Estamos reconstituindo a cadeia de comando. Na questão da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, teremos condições de apresentar uma cadeia de comando elaborada.
    Mas até aqui?
    Nós não vamos apresentar o que nós não temos. O resultado é o relatório. Essa história que nós estamos sentados, que há um certo secretismo, é conversa para boi dormir. Agora, nós é que definimos o ritmo. Os nossos parâmetros são os seguintes: as nossas responsabilidades e o dever que temos com os familiares dos mortos e desaparecidos políticos.
    O senhor poderia dar um número de quantas violações de direitos humanos a comissão chegou até um resultado final?
    Acho que um número não reflete. As violações são prisão arbitrária, desaparecimento forçado, tortura etc. Diante do nosso mapeamento, tem exemplo para todas essas violações. Fizemos entrevistas com perpetradores e 40 anos depois é um trabalho de arqueologia forense. Temos um muro com alguns ladrilhos que temos de completar. [Há] 50 investigações em curso relativas a graves violações de direitos humanos.
    Outra coisa: só nós temos o poder de convocar testemunhas ou responsáveis dos perpetradores. Eles podem ser conduzidos se não quiserem vir. Temos uma lista com 350 nomes compilados e identificados. Ouvimos 59. Há uma dedicação intensa da investigação do Araguaia e as sucessivas ações de extermínio. Está avançado.
    Em relação aos arquivos, a comissão sabia dos novos arquivos de gabinetes revelados pela Folha com documentos trocados entre os chefes das pastas durante a ditadura militar? Qual importância desse achado?
    Não quero menosprezar um trabalho de um jornal onde trabalhei 12 anos e da qualidade dos jornalistas. Nós sabíamos da existência desses arquivos. A Folha fez um grande serviço. São documentos absolutamente decisivos. A Folha divulgou documentos que são complementos extraordinários ao levantamento desses 250 órgãos de monitoramento em ministérios e outros públicos.
    Vocês usaram os arquivos da Comissão de Anistia, por exemplo?
    Sim. Ontem mesmo decidimos a abordagem que vamos fazer. São 70 mil processos, 30 mil deferidos. Nós discutimos --não vou dizer qual é-- mas vamos escolher categorias por amostragem e aí analisaremos as graves violações. Estamos trocando documentos, estreitamente, desde início.
    Qual a maior dificuldade prática para cumprir o que manda a lei?
    Quando a [norte-americana] Priscila Hayner, que fez o livro fantástico "Unspeakable Truths" ["Verdades Indizíveis" - livro, sem tradução para português, sobre as diferentes comissões da verdade no mundo], perguntou ao arcebispo Desmond Tutu [prêmio Nobel da Paz, que fez parte da comissão da verdade na África do Sul], ele deu uma resposta muito direta: a relação entre os membros era um verdadeiro inferno. Não temos esse problema. Nos conhecemos há 35 anos, somos unidos --há uma enorme convergência, confluência enorme-- é claro que são seis cabeças, experiências diferentes, mas temos um denominador comum de coesão extraordinária.
    Mas há relatos de divisões. O "grupo São Paulo" [Paulo Sérgio Pinheiro, Maria Rita Khel e José Carlos Dias] defende um relatório final sem divulgação de detalhes antes. Já Claudio Fonteles e Rosa Cardoso querem trazer informações durante o processo. Há uma divisão no método de trabalho da comissão?
    É piada. História muito provinciana. Temo que isso não corresponda a realidade dos fatos. Evidentemente que cada um tem seu estilo próprio. Mas o Claudio [Fonteles] é meu amigão, concordo com tudo que ele faz. Nós estamos fechados em apresentar um relatório mais complexo, completo e sofisticado possível dia 16 de maio à presidente. Evidente que existe estilos e "timings" diferentes. Ou você acha que é um batalhão, imagem militar que não queria usar, ou uma crença religiosa que todos pensam igual? Além do mais, temos diferentes formações. Quem fez essa composição com imenso cuidado foi a presidente da República, que não poderia ter escolhido um grupo mais coeso e fraterno.
    A presidente Dilma cobrou algo?
    Olha, eu só posso achar aquilo que a presidente da República me diz. Poucas comissões da verdade contaram com um apoio de um governo como a nossa Comissão. Jamais ouvi da presidente essas coisas que estou lendo. Vai ver que tem gente que é versado em telepatia ou psicografa.
    Vocês estão pressionados?
    Você acha que nesse grupinho alguém está pressionado? José Carlos Dias? A Rosa [Cardoso]? Imagine. Não tem pressão. A quem nos reportamos diretamente é a presidente da República e os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Esses são os nossos dois senhores. Eles têm o direito de nos fazer crítica, exigir, comentar e determinar o que nós vamos fazer.
    *Qual a participação do José Paulo Cavalcanti? *
    Essa é outra coisa que eu não entendo muito bem: fixar no José Paulo. Eu o conheço desde o governo Sarney, ele era o que hoje se chama de secretário-executivo. Grande advogado, jurista e, como se não bastasse, grande escritor. O trabalho dele aqui é igual ao nosso. Acho injusto focalizar nele, como seria injusto focalizar em qualquer outro.
    O senhor parece estar nervoso. As informações que tem saído na imprensa sobre a Comissão da Verdade te incomodam?
    Nervoso? Estou sempre nervoso. Eu não fico nervoso com notícias na imprensa, mas essa fixação no José Paulo eu acho injusta e imprecisa. É um companheiro leal, presente como qualquer um dos outros.
    Algum militar se recusou a cooperar com a comissão?
    Até o momento, militares não. Houve dois casos de outros funcionários, que não quero mencionar, que foram convocados e não compareceram. Estão sendo investigados e tomaremos as medidas cabíveis.
    Em algum país foi necessário mais de uma comissão da verdade. O Senhor acha que no Brasil será necessário?
    Alguns países africanos. Eu não posso atirar no próprio pé. Eu acho que temos o dever de fazer o melhor trabalho possível. O Brasil teve duas comissões anteriores. Mas a nossa Comissão é a única com poder para fazer, com poder de responsabilização e acesso ilimitado aos arquivos. Não posso excluir, mas dadas as características da Comissão da Verdade eu não diria que nos próximos 20 anos teremos outra comissão. É preciso aproveitar, mesmo que não gostem dos membros. Não sei quando vai surgir outra oportunidade.
    É possível ir em cada um dos prédios do Exército e, se necessário com ordens judiciais, para averiguar a existência dos papéis nas casas de oficiais da ditadura que podem ter sobrevivido a destruição?
    Não se pode fazer esse tipo de ação no momento em que temos o apoio do ministro da Defesa. Estamos conseguindo um diálogo com os três comandantes militares na questão do desaparecimento da documentação. Em um certo momento vamos examinar os cenários que estão dentro da nossa competência.

    Balanço de um ano será positivo, diz coordenador
    Pinheiro afirmou que informações sobre divisão no grupo são 'piada'
    Para ele, comissão está empenhada em cumprir responsabilidades e apresentar um relatório 'completo e sofisticado'
    DE BRASÍLIAEm entrevista concedida à Folha, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, afirmou que o grupo ainda tem um ano para funcionar e está empenhado em cumprir "as responsabilidades e o dever com os familiares dos mortos e desaparecidos políticos".
    Pinheiro classificou a informação sobre a divisão no método de trabalho entre os integrantes da comissão como "piada" e "história muito provinciana".
    "Estamos fechados em apresentar um relatório mais completo e sofisticado possível", afirmou o coordenador. "O resultado fundamental da comissão é o relatório".
    Ele disse ainda que existem "estilos e timings' diferentes" entre os membros.
    Na opinião dele, o balanço de um ano será positivo.
    Apesar de não apresentar um número fechado de casos de violação de direitos humanos, revelou que há 50 investigações em curso. Há uma lista com 350 nomes identificados de responsáveis por essas violações, disse. Segundo Pinheiro, foram ouvidas 59 testemunhas.
    O coordenador da comissão afirmou que 44 casos de suicídio poderão ser revistos. A digitalização dos 16 milhões de páginas no Arquivo Nacional também foi apontada por ele como um avanço alcançado.
    "Conseguimos o feito da revisão da certidão de óbito de Vladimir Herzog [jornalista assassinado pelo regime]".
    Pinheiro diz que a comissão apontará uma cadeia de comando que matou militantes do PC do B na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), segundo ele, "em sucessivas ações de extermínio".
    José Paulo Cavalcanti negou que falte dedicação de sua parte. Ele disse estar comprometido com os trabalhos da comissão.

      ANÁLISE
      Iniciativa é útil, mas falta sistematizar resultados e aumentar transparência
      INÊS VIRGINIA PRADO SOARESESPECIAL PARA A FOLHAComissões da verdade são arranjos institucionais para lidar com o legado de violência após a transição de regimes autoritários e guerras civis para a democracia e a paz.
      São particularmente úteis se há impunidade. O Brasil instalou sua Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012 para esclarecer episódios de violações a direitos humanos de 1946 a 1988.
      O país demorou para tomar essa iniciativa, mas teve a vantagem de aproveitar as experiências das 40 comissões existentes no mundo. Pôde contar também com o vasto conjunto documental, de iniciativas não oficiais e oficiais, como o Projeto Brasil Nunca Mais e o Dossiê da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
      O governo poderia ter instalado a comissão por norma administrativa, mas optou por lei aprovada no Congresso. Além de maiores poderes investigativos, a lei garante que a tarefa de responsabilização pública dos autores de tortura, mortes e desaparecimentos seja cumprida.
      A lei também fortaleceu a possibilidade de trabalho em rede, com a instalação de outras comissões em âmbitos locais e abertura para atuação em cooperação com a sociedade e outras instituições.
      Com um ano para o término das atividades, a comissão tem desafios em assuntos ligados à participação da sociedade, transparência nos trabalhos e sistematização e divulgação de dados.
      As investigações foram divididas em 12 grupos de trabalho e foi publicado um novo regimento. Mas no site da comissão pouco há sobre o que cada grupo tem feito.Também não há indicação clara da estrutura administrativa voltada à articulação com as comissões estaduais. Nem se sabe o quanto (ou se) a comissão aproveitará o trabalho das regionais.
      Há deficiência na transparência e na definição das atividades, além de escassez de mecanismos participativos e meios de monitoramento.
      Não se sabe se os grupos de trabalho seguem um padrão nem se há orientações nesse sentido. Pode ser um problema, pois, embora as atividades da comissão não tenham caráter jurisdicional ou persecutório, é importante que os dados possam ser usados adiante em ações judiciais.

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