Renata Mariz
A mais curta,
importante e festejada lei brasileira entrou em vigor ontem. Com 17
palavras organizadas em apenas dois artigos, a Coroa determina o fim da
escravidão no Brasil. Depois de três séculos e meio de cativeiro, os
negros podem comemorar a tão sonhada liberdade. Com um vestido
branco-pérola, a princesa regente, Isabel, assinou o decreto no Paço
Imperial, centro do Rio de Janeiro, onde cerca de 10 mil pessoas
festejaram o ato.
Defensor fervoroso da causa, o jornalista José do Patrocínio ajoelhou-se e beijou as mãos da princesa, seguido por outros membros da Confederação Abolicionista. Isabel declarou que seria “um dos mais belos dias de sua vida” não fosse o fato de o pai, D. Pedro II, estar doente. Há quase 11 meses, o monarca passou o poder à filha e seguiu para a Europa, onde se submete a tratamento médico.
Nas ruas, estandartes abolicionistas lembraram a luta histórica dos negros que resistiram à escravidão, uma saga marcada por rebeliões, fugas e pela ajuda de muitos que lutaram em favor da causa da liberdade. Muitos heróis foram homenageados: de Zumbi— que liderou o maior dos quilombos brasileiros, ainda no período colonial — a negros anônimos que acionaram com sucesso, nos últimos anos, a Justiça para reivindicar suas alforrias.
Depois de assinar o decreto, batizado de Lei Áurea, que levou o número 3.353, a princesa Isabel travou uma rápida conversa com o barão de Cotegipe, um dos mais ferrenhos opositores da abolição. Ao senador demitido por ela do cargo de presidente do Conselho de Ministros, Isabel teria perguntado o que ele achava do gesto do governo de sancionar a lei. O aristocrata sentenciou: “Redimiste, sim, Alteza, uma raça; mas perdeste vosso trono.”
Memória viva da exclusão
Aqueles
dias que antecederam a abolição da escravatura parecem, hoje, apenas
registros dos livros de história. Mas pulsam vivos na memória de quem
ainda guarda alguma relação com os acontecimentos da época. As irmãs
Maria das Dores Andrade, de 97 anos, e Dalva do Nascimento, 94, são
descendentes de quem viveu aquele período. “Quando nós nascemos, a
escravidão já tinha sido abolida, mas, até hoje, eu me pergunto se foi
abolida mesmo”, questiona Maria. “É claro que o progresso veio e muita
coisa mudou, o país está mais humano, mas ainda sinto que as coisas
precisam continuar mudando”, afirma.
Da família de oito irmãos, só elas estão vivas. Acreditam que os antepassados vieram do Congo e de Moçambique. “Nós moramos numa fazenda, em Prata, no interior de Minas. Nessa região tinha muita gente desses países. Logo depois, convivemos com árabes e italianos, que também chegaram para ajudar a construir o país”, conta Maria.
Outra lembrança da época é a diferença de tratamento dado a negros e brancos. “Diziam que o país não ia para frente porque estava cheio de negros. Mas eles precisavam de gente para trabalhar. Os negros eram muito inteligentes e trouxeram muita coisa boa para o Brasil.”
Não era fácil enfrentar o preconceito racial. Dalva lembra que, quando tinha 15 anos, participou de um concurso na escola. Quem tivesse o melhor desempenho ia coroar Maria em uma cerimônia religiosa: “Eu tive a melhor nota. Quando a diretora comprou as coisas para me vestir de anjo, falaram: ‘você está doida, já viu anjo negro?’” Dalva ficou revoltada. “Fui à igreja e o cônego me disse que anjo não tinha cor. Conversou com as pessoas que reclamaram e eu acabei sendo o anjo. Esse tipo de coisa acontecia”, lembra. (GC e RM)
Um abismo social barra a igualdade
Brasília - Uma abolição incompleta. É o que mostram praticamente todos os indicadores sociais brasileiros, quando é feito o recorte racial. Os negros são mais mal assistidos que a população branca. Os números envergonham: a população negra têm 1,6 ano de estudo a menos que a branca; representa 65,1% das vítimas de homicídios; e sustenta uma taxa de mortalidade infantil 60% maior que a da população branca.
“Hoje o negro não tem como não se revoltar. É fato que deram mais oportunidades ao filho do imigrante italiano, que era tão pobre quanto seus antepassados, do que deram para ele”, compara o historiador Bruno de Cerqueira, da Universidade de Campinas (Unicamp). E ele ressalta que o racismo nunca foi tão cruel quanto na República Velha, depois da queda da monarquia. “Não havia código negro, como em outros países, mas o apartheid que se faz de forma institucional é ainda melhor do que aquele não declarado. O que se fez com os negros aqui foi, simplesmente, não dar oportunidades, deixá-los à margem, nas posições menos qualificadas”.
A ideia de inferioridade determinada pela cor da pele só foi questionada abertamente em 1932, com a publicação de Casa Grande & Senzala, do sociólogo Gilberto Freyre. À discriminação velada juntou-se a histórica falta de políticas específicas para essa parcela da população. E, apesar de algumas ações afirmativas, o preconceito não acabou. “A sociedade brasileira é racializada. Quando o negro aparece em um restaurante de melhor nível, todos olham com surpresa. Isso é um fato”, assegura Carlos Sant’Anna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. (Colaborou Renata Mariz)
Defensor fervoroso da causa, o jornalista José do Patrocínio ajoelhou-se e beijou as mãos da princesa, seguido por outros membros da Confederação Abolicionista. Isabel declarou que seria “um dos mais belos dias de sua vida” não fosse o fato de o pai, D. Pedro II, estar doente. Há quase 11 meses, o monarca passou o poder à filha e seguiu para a Europa, onde se submete a tratamento médico.
Nas ruas, estandartes abolicionistas lembraram a luta histórica dos negros que resistiram à escravidão, uma saga marcada por rebeliões, fugas e pela ajuda de muitos que lutaram em favor da causa da liberdade. Muitos heróis foram homenageados: de Zumbi— que liderou o maior dos quilombos brasileiros, ainda no período colonial — a negros anônimos que acionaram com sucesso, nos últimos anos, a Justiça para reivindicar suas alforrias.
Depois de assinar o decreto, batizado de Lei Áurea, que levou o número 3.353, a princesa Isabel travou uma rápida conversa com o barão de Cotegipe, um dos mais ferrenhos opositores da abolição. Ao senador demitido por ela do cargo de presidente do Conselho de Ministros, Isabel teria perguntado o que ele achava do gesto do governo de sancionar a lei. O aristocrata sentenciou: “Redimiste, sim, Alteza, uma raça; mas perdeste vosso trono.”
Memória viva da exclusão
Da família de oito irmãos, só elas estão vivas. Acreditam que os antepassados vieram do Congo e de Moçambique. “Nós moramos numa fazenda, em Prata, no interior de Minas. Nessa região tinha muita gente desses países. Logo depois, convivemos com árabes e italianos, que também chegaram para ajudar a construir o país”, conta Maria.
Outra lembrança da época é a diferença de tratamento dado a negros e brancos. “Diziam que o país não ia para frente porque estava cheio de negros. Mas eles precisavam de gente para trabalhar. Os negros eram muito inteligentes e trouxeram muita coisa boa para o Brasil.”
Não era fácil enfrentar o preconceito racial. Dalva lembra que, quando tinha 15 anos, participou de um concurso na escola. Quem tivesse o melhor desempenho ia coroar Maria em uma cerimônia religiosa: “Eu tive a melhor nota. Quando a diretora comprou as coisas para me vestir de anjo, falaram: ‘você está doida, já viu anjo negro?’” Dalva ficou revoltada. “Fui à igreja e o cônego me disse que anjo não tinha cor. Conversou com as pessoas que reclamaram e eu acabei sendo o anjo. Esse tipo de coisa acontecia”, lembra. (GC e RM)
Um abismo social barra a igualdade
Grasielle Castro
Publicação: 14/05/2013 04:00
Brasília - Uma abolição incompleta. É o que mostram praticamente todos os indicadores sociais brasileiros, quando é feito o recorte racial. Os negros são mais mal assistidos que a população branca. Os números envergonham: a população negra têm 1,6 ano de estudo a menos que a branca; representa 65,1% das vítimas de homicídios; e sustenta uma taxa de mortalidade infantil 60% maior que a da população branca.
“Hoje o negro não tem como não se revoltar. É fato que deram mais oportunidades ao filho do imigrante italiano, que era tão pobre quanto seus antepassados, do que deram para ele”, compara o historiador Bruno de Cerqueira, da Universidade de Campinas (Unicamp). E ele ressalta que o racismo nunca foi tão cruel quanto na República Velha, depois da queda da monarquia. “Não havia código negro, como em outros países, mas o apartheid que se faz de forma institucional é ainda melhor do que aquele não declarado. O que se fez com os negros aqui foi, simplesmente, não dar oportunidades, deixá-los à margem, nas posições menos qualificadas”.
A ideia de inferioridade determinada pela cor da pele só foi questionada abertamente em 1932, com a publicação de Casa Grande & Senzala, do sociólogo Gilberto Freyre. À discriminação velada juntou-se a histórica falta de políticas específicas para essa parcela da população. E, apesar de algumas ações afirmativas, o preconceito não acabou. “A sociedade brasileira é racializada. Quando o negro aparece em um restaurante de melhor nível, todos olham com surpresa. Isso é um fato”, assegura Carlos Sant’Anna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. (Colaborou Renata Mariz)
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