terça-feira, 14 de maio de 2013

ALFORRIA » Terceirização da escravidão-Mateus Parreiras, Luiz Ribeiro e Grasielle Castro‏

Empreiteiras e aliciadores desvinculam alojamentos dos canteiros de obras para confundir a fiscalização. Nos centros urbanos o trabalho degradante fica com prestadores de serviço 


Mateus Parreiras, Luiz Ribeiro e Grasielle Castro


Estado de Minas: 14/05/2013 


A imagem de uma pessoa subjugada, numa plantação ou carvoaria isolada num dos rincões do estado é o que geralmente vem à mente quando se fala em trabalho análogo à escravidão. Contudo, a atividade perversa, que submete milhares de brasileiros a condições degradantes, não se restringe ao meio rural. Só neste ano, das 283 pessoas libertadas de alojamentos precários e trabalhos forçados, 122 (43%) estavam em centros urbanos como Belo Horizonte e Grande BH (66), São Paulo (38), Goiânia (12) e Rio de Janeiro (6). Enquanto o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) investiga denúncias em canteiros de obras e empresas de serviços pesados, a reportagem do Estado de Minas mostra um novo esquema criado por empregadores e agenciadores da mão de obra oriunda do interior e de outros estados para ludibriar a fiscalização. Em vez de manter alojamentos próprios, os agenciadores agora terceirizam essa parte.

O Bairro Buritis, na Região Oeste de BH, é um dos mais aquecidos mercados imobiliários da capital mineira, o que fez dele um dos pontos com mais canteiros de obra em atividade. Entre as centenas de frentes de trabalho, há operários vindos de vários lugares do país. O que muitos deles têm em comum é o intermédio de um agenciador que conseguiu serviço para eles, de apelido “Gato Seco”. O nome dele e o apelido constam em pelo menos seis canteiros de obras fiscalizados nos últimos dois anos pelos agentes do MTE.

À primeira vista, Gato Seco parece um operário comum: macacão de peão, capacete de plástico amarelo, óculos escuros e um celular por meio do qual fala sem parar. Andando de uma obra para a outra, o homem de não mais de 40 anos concordou em contar como se dá hoje em dia o emprego de mão de obra em condições análogas às de escravidão, com a condição de não ter o nome revelado. “Antes, a gente tomava muita multa da fiscalização, principalmente por causa dos alojamentos. Para seguir o que o MTE quer, teríamos de fazer um hotel para os rapazes (trabalhadores)”, considera. “Então, o que a gente faz é usar uma outra empresa. A gente fala que é uma empreiteira. Os trabalhadores dormem nos alojamentos deles, bem longe daqui. Comem por lá, tomam banho, bebem a cachaça e fazem tudo quanto há por lá”, conta o agenciador.

Ele admite que essa é a realidade atual. “Agora mesmo, nessa obra aqui, tenho 20 rapazes que trouxe de Bocaiuva (Norte de Minas). A empreiteira traz aqui, eles trabalham o dia inteiro e depois são levados de volta.” No caso de a fiscalização aparecer, o esquema funciona para ludibriar as multas. “A empreiteira tem tempo de mudar as coisas deles para outro alojamento, juntar as carteiras de trabalho e o que mais precisar. Está é faltando gente para trabalhar, porque serviço tem demais. E, se não for assim, a gente não consegue mais peão”, resume o agenciador.

Resgate Pelo Buritis não é difícil encontrar obras que mantêm operários trazidos de outros lugares para condições subumanas de trabalho. Em série de fiscalizações nos canteiros da JGR Engenharia e Serviços, entre 24 de agosto e 20 de setembro, agentes do MTE resgataram 88 pessoas em condições análogas à escravidão. Foram 47 autos de infrações lavrados em cinco canteiros, num total de R$ 198 mil em multas.

De acordo com o processo gerado pela fiscalização, eram 42 baianos, 21 sergipanos, 24 norte-mineiros e um alagoano que trabalhavam sem condições adequadas de proteção, sem registros de pontos e das carteiras de trabalho. Entre eles foram encontrados seis menores de idade “em local insalubre e perigoso”.

O alojamento da turma ficava nos subsolos ou porões, o que é proibido. Camas, lençóis, armários e vasos sanitários estavam em desacordo com as regras trabalhistas, sem higiene e limpeza nas cozinhas e alojamentos. Faltava também água potável, filtrada e fresca. As instalações elétricas estavam descobertas. No piso dos canteiros de obras havia várias pontas de vergalhões de aço desprotegidas e também aberturas nos pisos para transporte vertical de material sem guarda-corpos.

“Onde há um pobre coitado procurando serviço, tem sempre um gato por perto interessado em aliciá-lo para a exploração e o trabalho degradante”, afirma o frade Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ele associa o problema à baixa escolaridade e más condições de renda nas regiões pobres do país, como o Norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha. “O trabalho escravo é um fenômeno extremo de violação da dignidade e da liberdade. E isso traz prejuízos para a economia do país. As violações de regras de mercado abrem a oportunidade de retaliações de outros mercados por causa da competitividade desleal e de infrações de direitos humanos”, alerta Plassat.

De acordo com o coordenador do grupo de combate ao trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego em Minas Gerais, Marcelo Gonçalves Campos, o manutenção de pessoas em condições análogas à escravidão ainda é um traço cultural no Brasil que precisa ser combatido com vigor. “Percebemos que há uma cultura do empregador de suprimir os direitos pelo lucro. A partir de 2003, a legislação trabalhista se aprimorou e hoje contamos com todos os instrumentos de governo, sejam polícias ou Ministério Público, para fiscalizar e coibir as práticas análogas à escravidão", afirma. “As denúncias dos trabalhadores, parentes e testemunhas, ainda são nossa melhor forma de informação”, disse


Ferida difícil de cicatrizar

Brasília – Passados 125 anos da aprovação da Lei Áurea, os embates gerados na tramitação da proposta mobilizam o Poder Legislativo até hoje. Uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que fortalece os instrumentos de combate à exploração do trabalhador, apresentada há 18 anos pelo deputado federal Paulo Rocha (PT-PA), tramita no Congresso sem avançar. Considerada uma segunda abolição, a PEC propõe o confisco da terra onde for flagrada a prática de condições de trabalho análogas à escravidão, com as áreas sendo destinadas à reforma agrária ou ao uso urbano. E esse ponto que trava a discusão.

A PEC já entrou e saiu da pauta do Congresso diversas vezes. Em 2004, a medida ganhou força, depois da grande comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais e de um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que faziam uma fiscalização no Noroeste de Minas Gerais. Os produtores rurais Antério e Norberto Mânica, acusados de serem os mandantes do crime – que ficou conhecido como Chacina de Unaí, em referência ao município onde os servidores foram assassinados –, ainda não foram julgados.

No ano passado, a proposta foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas voltou ao Senado Federal por causa de uma modificação no texto. No período que antecedeu à aprovação da emenda, a bancada ruralista, contrária à proposta, tentou esvaziar o debate, ao defender que a lei definisse exatamente os casos que pudessem ser caracterizados como trabalho escravo.

Com aval No mês passado, o relator da PEC na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), deu parecer favorável ao texto da Câmara, sem alterações. Na justificativa, o senador argumenta que, ao permitir o confisco do imóvel no qual for flagrado o trabalho análogo à escravidão, o país dará um sinal inequívoco de que está empenhado em acabar definitivamente com essa chaga, que fere não só as leis trabalhistas, mas, acima de tudo, a dignidade das pessoas. Se aprovada na CCJ, a proposta seguirá ao plenário para ser votada em dois turnos.

Atualmente, o trabalho escravo – em linhas gerais, descrito como privação de liberdade para se desligar do patrão – é considerado grave violação dos direitos humanos, crime previsto no Artigo 149 do Código Penal. Enquanto a discussão se arrasta no Congresso, o país continua flagrando trabalhadores sendo explorados em condições análogas à escravidão. Na quinta-feira, oito pessoas foram libertadas de um sítio em Castelo dos Sonhos, no município de Altamira, Sudoeste do Pará. De acordo com a denúncia feita ao Ibama, o dono da fazenda, armado, fazia ameaça aos trabalhadores e os obrigava a fazer compras na própria fazenda, caracterizando a escravidão por dívida, já que os trabalhadores nunca conseguiam quitar as contas. Um litro de leite, por exemplo, era vendido por R$ 17.  

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