Empreiteiras e aliciadores desvinculam
alojamentos dos canteiros de obras para confundir a fiscalização. Nos
centros urbanos o trabalho degradante fica com prestadores de serviço
Mateus Parreiras, Luiz Ribeiro e Grasielle Castro
Estado de Minas: 14/05/2013
A
imagem de uma pessoa subjugada, numa plantação ou carvoaria isolada num
dos rincões do estado é o que geralmente vem à mente quando se fala em
trabalho análogo à escravidão. Contudo, a atividade perversa, que
submete milhares de brasileiros a condições degradantes, não se
restringe ao meio rural. Só neste ano, das 283 pessoas libertadas de
alojamentos precários e trabalhos forçados, 122 (43%) estavam em centros
urbanos como Belo Horizonte e Grande BH (66), São Paulo (38), Goiânia
(12) e Rio de Janeiro (6). Enquanto o Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE) investiga denúncias em canteiros de obras e empresas de serviços
pesados, a reportagem do Estado de Minas mostra um novo esquema criado
por empregadores e agenciadores da mão de obra oriunda do interior e de
outros estados para ludibriar a fiscalização. Em vez de manter
alojamentos próprios, os agenciadores agora terceirizam essa parte.
O
Bairro Buritis, na Região Oeste de BH, é um dos mais aquecidos mercados
imobiliários da capital mineira, o que fez dele um dos pontos com mais
canteiros de obra em atividade. Entre as centenas de frentes de
trabalho, há operários vindos de vários lugares do país. O que muitos
deles têm em comum é o intermédio de um agenciador que conseguiu serviço
para eles, de apelido “Gato Seco”. O nome dele e o apelido constam em
pelo menos seis canteiros de obras fiscalizados nos últimos dois anos
pelos agentes do MTE.
À primeira vista, Gato Seco parece um
operário comum: macacão de peão, capacete de plástico amarelo, óculos
escuros e um celular por meio do qual fala sem parar. Andando de uma
obra para a outra, o homem de não mais de 40 anos concordou em contar
como se dá hoje em dia o emprego de mão de obra em condições análogas às
de escravidão, com a condição de não ter o nome revelado. “Antes, a
gente tomava muita multa da fiscalização, principalmente por causa dos
alojamentos. Para seguir o que o MTE quer, teríamos de fazer um hotel
para os rapazes (trabalhadores)”, considera. “Então, o que a gente faz é
usar uma outra empresa. A gente fala que é uma empreiteira. Os
trabalhadores dormem nos alojamentos deles, bem longe daqui. Comem por
lá, tomam banho, bebem a cachaça e fazem tudo quanto há por lá”, conta o
agenciador.
Ele admite que essa é a realidade atual. “Agora
mesmo, nessa obra aqui, tenho 20 rapazes que trouxe de Bocaiuva (Norte
de Minas). A empreiteira traz aqui, eles trabalham o dia inteiro e
depois são levados de volta.” No caso de a fiscalização aparecer, o
esquema funciona para ludibriar as multas. “A empreiteira tem tempo de
mudar as coisas deles para outro alojamento, juntar as carteiras de
trabalho e o que mais precisar. Está é faltando gente para trabalhar,
porque serviço tem demais. E, se não for assim, a gente não consegue
mais peão”, resume o agenciador.
Resgate Pelo Buritis não é
difícil encontrar obras que mantêm operários trazidos de outros lugares
para condições subumanas de trabalho. Em série de fiscalizações nos
canteiros da JGR Engenharia e Serviços, entre 24 de agosto e 20 de
setembro, agentes do MTE resgataram 88 pessoas em condições análogas à
escravidão. Foram 47 autos de infrações lavrados em cinco canteiros, num
total de R$ 198 mil em multas.
De acordo com o processo gerado
pela fiscalização, eram 42 baianos, 21 sergipanos, 24 norte-mineiros e
um alagoano que trabalhavam sem condições adequadas de proteção, sem
registros de pontos e das carteiras de trabalho. Entre eles foram
encontrados seis menores de idade “em local insalubre e perigoso”.
O
alojamento da turma ficava nos subsolos ou porões, o que é proibido.
Camas, lençóis, armários e vasos sanitários estavam em desacordo com as
regras trabalhistas, sem higiene e limpeza nas cozinhas e alojamentos.
Faltava também água potável, filtrada e fresca. As instalações elétricas
estavam descobertas. No piso dos canteiros de obras havia várias pontas
de vergalhões de aço desprotegidas e também aberturas nos pisos para
transporte vertical de material sem guarda-corpos.
“Onde há um
pobre coitado procurando serviço, tem sempre um gato por perto
interessado em aliciá-lo para a exploração e o trabalho degradante”,
afirma o frade Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de
combate ao trabalho escravo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ele
associa o problema à baixa escolaridade e más condições de renda nas
regiões pobres do país, como o Norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha.
“O trabalho escravo é um fenômeno extremo de violação da dignidade e da
liberdade. E isso traz prejuízos para a economia do país. As violações
de regras de mercado abrem a oportunidade de retaliações de outros
mercados por causa da competitividade desleal e de infrações de direitos
humanos”, alerta Plassat.
De acordo com o coordenador do grupo
de combate ao trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego em
Minas Gerais, Marcelo Gonçalves Campos, o manutenção de pessoas em
condições análogas à escravidão ainda é um traço cultural no Brasil que
precisa ser combatido com vigor. “Percebemos que há uma cultura do
empregador de suprimir os direitos pelo lucro. A partir de 2003, a
legislação trabalhista se aprimorou e hoje contamos com todos os
instrumentos de governo, sejam polícias ou Ministério Público, para
fiscalizar e coibir as práticas análogas à escravidão", afirma. “As
denúncias dos trabalhadores, parentes e testemunhas, ainda são nossa
melhor forma de informação”, disse
Ferida difícil de cicatrizar
Brasília
– Passados 125 anos da aprovação da Lei Áurea, os embates gerados na
tramitação da proposta mobilizam o Poder Legislativo até hoje. Uma
proposta de emenda à Constituição (PEC) que fortalece os instrumentos de
combate à exploração do trabalhador, apresentada há 18 anos pelo
deputado federal Paulo Rocha (PT-PA), tramita no Congresso sem avançar.
Considerada uma segunda abolição, a PEC propõe o confisco da terra onde
for flagrada a prática de condições de trabalho análogas à escravidão,
com as áreas sendo destinadas à reforma agrária ou ao uso urbano. E esse
ponto que trava a discusão.
A PEC já entrou e saiu da pauta do
Congresso diversas vezes. Em 2004, a medida ganhou força, depois da
grande comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais
e de um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que faziam
uma fiscalização no Noroeste de Minas Gerais. Os produtores rurais
Antério e Norberto Mânica, acusados de serem os mandantes do crime – que
ficou conhecido como Chacina de Unaí, em referência ao município onde
os servidores foram assassinados –, ainda não foram julgados.
No
ano passado, a proposta foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas
voltou ao Senado Federal por causa de uma modificação no texto. No
período que antecedeu à aprovação da emenda, a bancada ruralista,
contrária à proposta, tentou esvaziar o debate, ao defender que a lei
definisse exatamente os casos que pudessem ser caracterizados como
trabalho escravo.
Com aval No mês passado, o relator da PEC na
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, Aloysio
Nunes Ferreira (PSDB-SP), deu parecer favorável ao texto da Câmara, sem
alterações. Na justificativa, o senador argumenta que, ao permitir o
confisco do imóvel no qual for flagrado o trabalho análogo à escravidão,
o país dará um sinal inequívoco de que está empenhado em acabar
definitivamente com essa chaga, que fere não só as leis trabalhistas,
mas, acima de tudo, a dignidade das pessoas. Se aprovada na CCJ, a
proposta seguirá ao plenário para ser votada em dois turnos.
Atualmente,
o trabalho escravo – em linhas gerais, descrito como privação de
liberdade para se desligar do patrão – é considerado grave violação dos
direitos humanos, crime previsto no Artigo 149 do Código Penal. Enquanto
a discussão se arrasta no Congresso, o país continua flagrando
trabalhadores sendo explorados em condições análogas à escravidão. Na
quinta-feira, oito pessoas foram libertadas de um sítio em Castelo dos
Sonhos, no município de Altamira, Sudoeste do Pará. De acordo com a
denúncia feita ao Ibama, o dono da fazenda, armado, fazia ameaça aos
trabalhadores e os obrigava a fazer compras na própria fazenda,
caracterizando a escravidão por dívida, já que os trabalhadores nunca
conseguiam quitar as contas. Um litro de leite, por exemplo, era vendido
por R$ 17.
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