Aprovação do projeto da"cura gay" revela,
além do preconceito inconcebível em uma sociedade moderna, postura
regressiva em ciência, moral, política e até mesmo religião
João Paulo
Estado de Minas: 29/06/2013
A provação pela Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados da chamada “cura gay” é um estranho fato
regressivo em meio à onda de sensibilidade, ainda que forçada pela
mobilização pública recente, em direção a medidas mais populares. Assim,
ao mesmo tempo em que as passagens de ônibus tinham seus preços
diminuídos, que a PEC 37 era derrubada e que a condenação dos gastos com
a Copa mostrava o constrangimento dos mesmos responsáveis por sua
eufórica aprovação há alguns meses, a decisão acerca da forma de
considerar homossexualismo ia na direção inversa. O que, no mínimo,
mostra uma fratura social profunda.
A bandeira, que já levou
milhões de pessoas às ruas em manifestações também horizontais e
criativas, foi rasgada com arrogância pelos integrantes da comissão, sem
que a repercussão ganhasse repúdio significativo a ponto de mobilizar a
mesma atenção das outras demandas políticas emergentes. Enquanto a
representatividade parlamentar vive seu momento de maior baixa na
história recente do país, a decisão do colegiado – que vem tendo sua
atuação contestada desde a eleição de seu novo presidente, o deputado
evangélico Marco Feliciano (PSC/SP), homofóbico confesso e convicto –, é
tida como legítima, embora fira princípios consagrados da moral, da
ciência e da política.
É preciso destacar ainda que, antes mesmo
da consideração do conteúdo da decisão, a forma como se deu a aprovação
da abertura para a implantação da “cura gay” vem plena de prepotência e
do pior do jogo político de cartas marcadas no Congresso. Em primeiro
lugar, o projeto do deputado João Campos (PSDB/GO) trata de uma decisão
que afronta outros princípios legais, já estabelecidos pelo Conselho
Federal de Psicologia (CFP), que desautoriza seus filiados, registrados
legalmente para o exercício clínico, a tratar homossexuais como doentes,
uma vez que o comportamento não se define como patológico. O CFP,
expressamente, proíbe psicólogos a colaborar para o “tratamento e cura
da homossexualidade”, além de vetar os pronunciamentos da categoria no
reforço a preconceitos ou em qualificar os homossexuais “como portadores
de qualquer desordem psíquica”.
Há, como se vê, muito mais que
excesso, já que se trata explicitamente de intromissão em seara que não
diz respeito ao Congresso, já que se trata de afirmação profissional
que, em todo o mundo civilizado, é regido pelos princípios da
autorregulação. Ou seja, sai a ciência e entra o preconceito como
ferramenta de diagnóstico e terapêutica. A doença passa a ser definida
por lei, numa das mais hediondas manifestações daquilo que Michel
Foucault chamou de “biopoder”, que faz dos corpos o objeto de repressão
por meio da prática de natureza política.
Além do equívoco de
origem e propósito, o projeto (que segue agora para outras comissões)
foi aprovado num clima de revanchismo em relação à postura da sociedade,
que se manifestou contrariamente à condução da comissão pelo deputado
Marco Feliciano, abrindo uma crise de legitimidade que mostrou os
limites do próprio Congresso, que se mostrou incapaz de corrigir seus
desvios internos. Não é motivo de condenar a comissão em si, mas a forma
como a mesma vem sendo constituída enquanto espaço de poder de partidos
e coligações, que barganham lugares de acordo com interesses
identificáveis. Há comissões cobiçadas, como a de orçamento, por
exemplo, e colegiados de segunda categoria.
Foi assim que a
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, antes foro de
grande vocalização social e política, se tornou desprestigiada frente a
outros comitês que manipulam verbas e analisam projetos mais lucrativos
para as máquinas partidárias e suas lideranças. Que os direitos humanos,
tradicional território da esquerda, tenha se tornado moeda de poucos
centavos na contabilidade política é sinal tanto de miopia ideológica
como de ineficácia política, dos parlamentares. Pegos em flagrante jogo
de interesse, ainda tentaram negociar com as forças conservadoras para
salvar a instituição, mas capitularam e retrocederam para territórios
mais defesos.
E não é só isso. Caso se tratasse de decisão
individual do presidente da comissão, seria apenas uma derrota pontual,
mas é preciso lembrar que a articulação de todo o colegiado foi
vitoriosa não apenas para colocar em votação um projeto espúrio, como
para aprová-lo por maioria dos votos de seus integrantes. Neste sentido,
não se trata de uma decisão anômala, mas de aprovação a ser colocada na
conta de todo o Congresso.
Para reafirmar essa estratégia, o
próprio presidente Marco Feliciano, antes acuado e sempre evasivo ao se
manifestar sobre sua homofobia de fato, saiu a campo não apenas para
comemorar a vitória como para confrontar a ministra de Direitos Humanos,
Maria do Rosário, que criticou a decisão da comissão, ameaçando e
dizendo, de forma clara, que ela ficasse atenta ao ano eleitoral que se
aproxima e às dívidas do governo com os evangélicos e os partidos que os
representam: “Acho que está mexendo no que não devia, senhora ministra,
fale com sua presidenta, porque o ano que vem é político”, desafiou o
parlamentar .
Mais que vitorioso em sua campanha e empáfia em se
manter à frente de um colegiado mesmo com forte contestação social, com
o risco até mesmo de inviabilizá-lo e de gerar crise com seu partido, o
presidente põe as cartas na mesa de sua conquista e do que dela
certamente virá como consequência. Na realidade, a pauta dos direitos
humanos foi conspurcada com apoio das forças políticas constituídas e da
esquerda, que perdeu seu protagonismo em nome de outros interesses. A
política se apequenou e a civilização brasileira regride de forma
preocupante. Mas a situação pode ser ainda pior.
Amor e política
Desde Freud o desejo é expressão de algo
que precisa ser compreendido tanto na dimensão individual quanto
política. Homoafetividade pode ser atitude religiosa sem transcendência
João Paulo
O
debate sobre a “cura gay” que ganha o campo político-institucional, no
entanto, vem alimentado de outra cena prévia. A condenação da
homossexualidade, que a leva a ser considerada objeto de medicalização e
cura, em outras palavras, de higienização, tem sua inspiração na moral e
na religião. Nunca na ciência. Desde que Sigmund Freud (1856-1939), com
seus Três ensaios sobre a sexualidade, ampliou o campo de compreensão
da manifestação erótica, tirando-a do campo da perversão para o do
entendimento, ficou claro que o sexo é plural e que, em sua
multiplicidade de emergência, iguala a todos. Freud chegou a defender
inclusive a bissexualidade constitutiva de todos os homens e mulheres. E
é por explicitar essas ideias que surgiu em contrapartida, por exemplo,
o dito vitoriano sobre “o amor que não ousa dizer seu nome”. Freud
nomeou todas as formas de amor, sem perder tempo em ser judicativo sobre
elas.
A psicanálise, contudo, em seu edifício de ciência do
inconsciente, nem por isso resolveu todos os dilemas no âmbito do
desejo, sobretudo no que diz respeito à colisão entre a liberdade de
desejar e os entraves postos pela cultura. Os freios do desejo não são
em si negativos e, em sua funcionalidade, deram ao homem a possibilidade
de sublimar os impulsos em obras de civilização. De outra ordem, no
entanto, são os vetos do desejo em nome das convenções e da moral
hegemônica ou religiosa (as religiões têm um inexplicável interesse –
quase obsessão – sobre o uso dos órgãos sexuais das pessoas).
Nesse
campo, moral e religião se deram as mãos para erigir um código – às
vezes explícito, às vezes tácito –, de proibições que não dizem da
condução do desejo, mas da funcionalidade das organizações sociais.
Proibir é sempre a máxima expressão do poder. Há uma nítida correlação
entre repressão sexual e modelo de organização social, que responde pela
necessidade de contenção da diferença em nome da preservação de modelos
pretensamente universais. Mas há, também, um claro viés político nisso
tudo.
Freud, entre outras percepções, foi capaz de identificar os
laços que ligam política e sexo. Como escreve em A moral sexual
“cultural” e o nervosismo moderno, em 1908: “A conduta sexual de uma
pessoa constitui o protótipo de suas demais reações. Em relação àqueles
homens que conquistam energicamente seu objeto sexual, podemos supor
análoga energia na luta por seus outros fins. Mas se, por atenderem a
uma série de considerações, renunciam à satisfação de seus poderosos
instintos sexuais, nos demais casos, serão mais conciliatórios e
resignados do que ativos”. Ou seja, mais que embasar a estrutura
familiar e social em sua vocação para conservar (sobretudo propriedades)
a partir da moral, a repressão à sexualidade é um poderoso instrumento
de contenção política.
Wilhelm Reich (1896-1957) vai ainda
adiante e propõe o combate de todas as estruturas repressoras, como a
família, a escola e as organizações religiosas. Em sua teoria da
revolução sexual – uma reação ao nazismo no campo da política e do
comportamento – ele via na aderência ao comportamento autoritário traços
da inibição sexual. Com isso, seu propósito, mais que liberar a
expressão do desejo e da energia sexual, se dirigia para uma
transformação das estruturas sociais e humanas. Para uma sociedade
livre, sexo igualmente livre.
Para Reich, a presença de um
contexto social não cerceador da vitalidade do corpo seria fundamental
para a formação do sujeito, em sua individualidade, e do cidadão, em seu
comportamento político. Não foi por acaso que, nos anos 1930, que
marcam a ascensão do nazismo na Alemanha, Reich tenha sofrido
perseguições tanto dos nazistas como dos comunistas ortodoxos. Sexo,
como se vê, é sempre perigoso em política convencional.
No
entanto, a abertura para a “cura gay” não se reflete apenas em grandes
teorias. Ela está presente exatamente no cotidiano da vida social, ao
fraturar as bases de tolerância em nome da fixação de apenas uma
orientação sexual. A diferença entre o desejo e sua realização é
geradora de tensão. A psicoterapia existe para tornar essa tensão
passível de ser trabalhada de forma respeitosa na vida intrapsíquica do
paciente. Psicoterapia não foi feita para trazer as pessoas para o
prumo, mas para dar a elas condição de expressar e realizar seus desejos
com o mínimo de sofrimento e o máximo de dignidade. A pedra de toque é o
sofrimento.
A “cura gay” quer instituir, no universo já
dramático do desejo, um elemento a mais de dissonância, que não parte do
sujeito e de sua máquina desejante, mas da moral externa, fundada, como
se sabe, em valores que são meramente convencionais e repressivos. O
papel do ato terapêutico é o de dar à pessoa que sofre a capacidade de
conjugar sua energia na construção de um projeto pessoal, que expresse
seu desejo com liberdade, consciente das determinações sociais, mas sem
se curvar a elas.
Quando a condição de homossexualidade se torna
uma patologia e, portanto, algo a ser extirpado ou revertido, quem
padece é o próprio sujeito. O fundamentalismo, seja ele moral ou
religioso, em termos estritos, é altamente perverso. Se há uma doença a
ser nomeada é a do preconceito. Uma psicoterapia digna de sua tradição
científica e ética não tira nem coloca ninguém no armário, mas reconhece
a liberdade e fortalece o sujeito para decisões responsáveis e livres,
inclusive no campo da expressão do desejo sexual.
Família e autoritarismo
Outro equívoco que cerca a questão da homossexualidade, tanto no
circuito laico como religioso, é a entronização da família como
instância por excelência da sociedade. A história da família mostra que
ela se transforma e que, ao lado do potencial de proteção, carrega com
denodo o conservadorismo moral e um patrimônio de horrores. Dizer que o
combate à homossexualidade é uma defesa das famílias é um erro
sociológico gravíssimo, já que não existe “a” família, mas organizações
familiares que se transformam com o tempo.
Na verdade, o modelo
de família hoje hegemônico seria considerado doentio há poucas décadas,
quando não se aceitava nem a igualdade entre os sexos (as mulheres eram
inferiores), nem a possibilidade da separação entre os cônjuges. Por
isso, ao se encher a boca para falar em família, é preciso deixar claro
de que grupo se fala. Deus, se existe, que nos livre do estilo
patriarcal das famílias do começo do século passado em sua sanha
persecutória e vazada de ódios contra a diferença.
Na
constituição histórica do atual desenho de organização familiar,
definido pela liberdade, igualdade e busca da felicidade como conquista
pessoal legítima (ninguém mais aceita ser condenado à infelicidade), foi
preciso vencer inimigos poderosos. Não é mais aceitável que a família
seja fundada em valores apenas patrimoniais, que a livre escolha do
parceiro deva se submeter aos interesses dos pais ou da confissão
religiosa, ou, finalmente, que a indissolubilidade seja uma carga e não
uma opção.
Por trás desse modelo está o que se chama de casamento
por amor. Pode parecer um truísmo, mas a família como a concebemos hoje
se trata de uma organização relativamente nova. E, em sua novidade,
carrega algumas realizações importantes. Por isso é de se estranhar que
sociedades ditas modernas e de Primeiro Mundo, como a França, saiam às
ruas contra o casamento gay.
Em sua base, essa forma de união
responde por conquistas que têm sua origem na própria sociedade
burguesa, que fez da felicidade individual o elemento responsável pela
base de sua estrutura social. O casamento gay, por sua estrita ligação à
escolha afetiva sobre todas as outras, é a mais exemplar realização do
casamento por amor.
A outra condenação da união gay vem de
diversas confissões religiosas, que se escoram em textos interpretados
sem sutileza ou inteligência, presos à letra sem capacidade de
metaforização. Religião em si não é um mal. Na verdade é das maiores
conquistas da história da civilização. Vêm das religiões alguns dos
princípios mais operativos na constituição da sociedade humana.
O
que talvez seja o grande desafio é dar à religião uma raiz mais humana e
menos transcendente. Quanto mais a religião busca entender os homens, e
não justificar os deuses criados por eles, maior a chance de acertar. É
das religiões monoteístas, por exemplo, que vem a mais revolucionária
ideia humanista de todos os tempos: a defesa do amor ao próximo.
Individual e coletivo
O filósofo Alain Badiou, em Elogio ao amor, propõe um interessante
paralelo entre política e amor. Para ele, o amor diz respeito ao
individual, enquanto a política apela para o coletivo. A integração
entre os dois universos sofreria por isso de certo estranhamento. Na
verdade, no amor trata-se de saber “se eles são capazes, a dois, de
assumir a diferença e torná-la criativa”. Já na política, o ponto de
partida é a multidão e o desafio é chegar a constituir a igualdade. No
horizonte do amor, a institucionalização se dá na família; no campo da
política, para reprimir o entusiasmo pela diferença, é necessária a
figura do Estado.
Se o amor convoca a diferença e a política a
igualdade, viveremos sempre na corda bamba de afirmar nossa
subjetividade e negociar nossos propósitos comuns. É para isso que
existe o amor, é para isso que fazemos política. Quando se volta para os
debates em torno da homoafetividade, o que se percebe é que podemos
estar perdendo nas duas áreas: fazendo má política pela incapacidade de
amar, e amando mal, pela inexpressividade do nosso verdadeiro desejo.
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