Estado de Minas - 29/06/2013
Tematizada
em sua mais alta potência e sem ceder espaço para verdades dogmáticas, a
beleza das insignificâncias pode revelar a expressão máxima de uma
adesão total ao viver.
Assim, risonha e mutante, a poética de
Manoel de Barros não comporta movimentos retilíneos uniformes nem
tampouco cultiva protocolos simétricos consensuais. Ao contrário. Sua
escrita escorregadia adora destroçar certezas cristalizadas e destrona
leitores que se acham conformados: “Todas as coisas cujos valores podem
ser/ disputados no cuspe A distância/ servem para poesia”.
Essa
escrita enviesada, que ama viver aos trechos, parece consignar uma
alegria que não brota isenta de seus próprios perigos. Por isso, a meu
ver, ela apresenta uma forte carga de transmutação que mescla metáforas,
metonímias e paródias, embaralhando os sentidos supostamente
consolidados e entortando as significações previsíveis (“o significado é
o uso”, diria Wittgenstein). Quer dizer, a poesia de Manoel de Barros
revela-se aberta e assistemática porque está sempre propensa a investir
em fundo perdido.
Fabuloso e incondicional amante de um
devir-alegre e dotado de potências criadoras de intensidades que solapam
todos os códigos através dos artifícios da linguagem, o cafarnaum
poético de Manoel de Barros tem a vocação de estraçalhar conformismos e
aflorar “poemas concebidos sem pecado”. Daí resultam, aliás, seus
“arranjos para assobio” e “exercícios de ser criança”. Quer dizer, são
tipos burilados de cativar as “grandezas do ínfimo”.
O poeta
parece reconhecer, por meio desse poder transfigurador do riso como
disfarce (máscara, duplo), os poderes de camuflagem da vida enquanto
(d)obra de arte: curto-circuito de forças plásticas efêmeras que
invariavelmente configuram novas possibilidades de sentido (o poeta
festeja a falta e o vazio).
Contrário a toda pretensão de
“proprietário da verdade”, o devir-criança se refaz permanentemente no
poeta que se experimenta húmus. Sabedor de sua sinuosa sina, mas
igualmente apto a forjar a complexidade do mundo, Manoel de Barros não
cessa um só instante de interagir com o cosmos, nele integrando-se.
Assim, vale-se do “perigoso talvez” próprio às estirpes hesitantes,
paixão extasiada pela existência das coisas ditas inferiores: “A espuma é
que me compõe:/ Cada muleta/ Com o seu rengo”.
O poeta se sabe
um experimentador, um tentador que encena a química das palavras – que
se experimentam nas infinitas combinações de seus termos – para produzir
a matéria de sua poesia. Talvez seja exatamente por isso que, em seus
textos porosos, as palavras apresentam-se como termos em metamorfose.
Disso ele tem consciência: “Escrever é cheio de casca e de pérola”.
Na
cosmologia do poeta não existe nada superior à própria vida, e a
capacidade de afirmá-la integralmente diz respeito à maneira pela qual
interpretamos o mundo como expressão e pensamento. Esse tipo de visão
condiz com o pensamento de quem assume ter caos dentro de si não como
algo a ser superado, mas como condição elementar de uma existência
desejante de transfigurações. Afinal, em meio a esse caos (e somente a
partir dele) é que poderão desabrochar “corolas de jias”. Isso equivale a
experimentar em seu próprio corpo a pulsação do mundo no extravasamento
de suas forças.
Continuação das águas Também não será em vão que
Manoel de Barros convidará seus leitores a uma espécie de excursão
poética a um Pantanal muito peculiar, a ela atrelando uma espécie de
acontecimento e ao mesmo tempo seu declínio. Declinar, aqui, significa
desabrochar nos homens o sentido da terra. Ou seja, o Pantanal aparece
no horizonte da poesia de Barros para postular um favorecimento à
desumanização da natureza: se o criador quer ser ele mesmo a criatura, o
recém-nascido, então deverá querer, também, ser a parturiente e a dor
da parturiente: “Os homens deste lugar são uma continuação das águas”.
Participar
da autocriação do mundo supõe uma larga capacidade de se lançar por
inteiro no jogo do recriar-se indefinidamente. Sobretudo porque, para
que funcione a “química do brejo”, primeiro será necessário tornar-se
cinza, reintegrando-se à terra: “Meu trabalho é cheio de nó pelas
costas. Tenho de transfazer natureza. À força de nudez o ser inventa”.
Noutras
palavras: deve-se amar o ocaso humano para que o mundo um dia se
reencontre “naturizado”. Mas a que equivale esse reintegrar-se? Será
necessário primeiramente reconhecer que o sentido da terra coincide com o
devir, aquilo que os gregos antigos reuniram sob o nome de physis
enquanto incessante vir a ser. Devolver ao homem o sentido da terra
será, então, substituir seus movimentos de humanização do mundo por
aqueles de “naturização”.
Ao experimentar-se húmus, o poeta
revela uma vontade de criar que reconhece na interpretação humana apenas
uma situação possível dentre outras tantas admissíveis: “A blandícia do
mormaço engendrava crianças”. Será preciso, portanto, recomeçar pela
transformação do próprio modo de ver a si e ao mundo, já que as
realidades vistas permanecerão sempre enigmáticas em seu tecido (“a
natureza ama esconder-se”, diria Heráclito).
Fica destarte a
lição: experimentando-se húmus, o desafio maior passa a ser a
desbanalização do olhar, e não simplesmente o afastamento do que é
supostamente banal. Enfim, sem fim: a poesia da vida é que é a prova dos
nove. O reino dos restos.
Flávio Boaventura é poeta,
ensaísta e professor do mestrado em estudos de linguagens do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).
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