Da origem seresteira popular à riqueza
harmônica com toques do barroco e do jazz, Minas Gerais criou uma escola
própria de violão, que se destaca no cenário nacional
Geraldo Viana
Estado de Minas: 29/06/2013
O
violão representa, em nosso país, um pouco da alma brasileira. A origem
exata dessa popularidade não se sabe. O que podemos afirmar é que
ilustres músicos se renderam a esse instrumento e que Minas Gerais tem
hoje uma escola definida no cenário nacional e internacional.
Há
várias vertentes que cultivam linguagens diferentes nesse instrumento.
Desde o paulista Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), com uma linguagem
refinada e desafiadora unindo técnica e bom gosto, com propostas
harmônicas arrojadas, até Baden Powell, um estilista que criou e
eternizou os afros-sambas juntamente com Vinicius de Moraes.
Por
sua vez, a escola erudita também nos presenteou com grandes violonistas
do porte de Sérgio e Eduardo Abreu e o duo Assad (Sérgio e Odair), que
representaram e representam o virtuosismo e a musicalidade brasileiros
nos mais importantes teatros do mundo todo, com o glamour de estrelas.
Da
escola popular, herdeira da tradição seresteira, com suas raízes na
modinha e no fado, temos ainda Américo Jacomino (Canhoto), que compôs a
célebre valsa Abismo de rosas, João Pernambuco, violonista vigoroso e
compositor profícuo, autor de pérolas como Sons de carrilhões e Jongo
(Interrogando), até chegar ao maior representante dessa escola,
Dilermando Reis, que frequentou e abrilhantou as famosas serestas de
Juscelino Kubitschek, em Diamantina. Nesse cenário, surge, em princípio
timidamente, a escola mineira.
Mozart Bicalho se destacou por
suas composições. Entre elas, a célebre valsa Gotas de lágrimas. Gravada
e popularizada por Dilermando Reis, essa valsa já aponta para uma
escola voltada para o apuro técnico, virtuosístico e para o
sentimentalismo melódico no violão mineiro. Dessa linhagem fazem parte
Nélson Piló, importante arranjador e professor de violão, e músicos
violonistas como Sebastião Ildefonso e José Vieira, que iriam exercer
importante papel na divulgação do violão com seus programas de rádio e
gravações em LP.
Enquanto isso, já estava formado o embrião que
culminaria no que hoje chamamos de harmonia mineira. Também de origem
incerta, dando margem para muita especulação, a música composta em Minas
Gerais assumiria um papel fundamental na chamada música elaborada, com
ares de “impressionismo tardio”.
Segundo relatos do violonista
José Pascoal Guimarães, colecionador e dono de um grande acervo do
violão, conclui-se que a origem e o desenvolvimento desse nosso talento
remonta à primeira metade do século 20. Naquela época, frequentavam
Minas Gerais o músico Garoto e Radamés Gnatalli, em visitas a Pedro
Quintão, casado com uma irmã de Chico Xavier.
José Pascoal conta
que eram comuns as idas desse grupo de amigos à cidade de Pedro Leopoldo
visitar Chico Xavier. Segundo ele, o violonista Garoto não abandonava
seu amigo violão em hipótese alguma e mesmo durante a viagem, por
estradas de terra em péssimas condições, o violonista exercitava suas
habilidades de instrumentista e compositor.
Nos fins de semana,
hospedado na casa de Pedro Quintão, em Belo Horizonte, nas tardes de
domingo, Garoto, com seu violão modelo Dinâmico e com o auxílio de
alto-falantes montados na porta da casa do amigo, lotava uma rua do
Bairro Sagrada Família com crianças, adultos, idosos e casais de
namorados, além de estudiosos do violão, que assistiam e aplaudiam o
virtuoso instrumentista. Daí a suposição do êxtase experimentado pelo
público ao ouvir peças tão modernas como Jorge do Fusa e Tristezas de um
violão entre as hoje populares Gente humilde e Naqueles velhos tempos.
Influência do jazz
Coincidência ou não, alguns anos depois, um grupo formado por jovens
músicos, nas horas dançantes de fins de semana, no Bairro Horto,
experimentava os acordes do jazz, sob a influência da audição de grandes
orquestras e da música de Debussy e Ravel. Segundo Chiquito Braga, um
dos frequentadores, eram comuns as idas à casa do contrabaixista Paulo
Horta, onde tocavam e ouviam discos dos grandes músicos da época.
Nessas
reuniões já havia um “garoto” que com olhar tímido e ouvido atento se
ligava nas modernidades e riscos que os verdadeiros criadores buscam.
Seu nome era Toninho Horta. Chiquito Braga lembra que Toninho, ainda
garoto, talvez somente observando, já tenha delineado ou vislumbrado um
caminho para a estilística que iria desenvolver, por meio de muito
estudo e dedicação, nos próximos anos.
Nessa vertente, a fusão
da religiosidade do barroco mineiro com a sofisticação harmônica
produziu músicos do quilate de Juarez Moreira, que, fiel à tradição
violonística, desenvolve importante trabalho de composição na música
instrumental, sendo considerado um dos mais importantes estilistas de
nosso tempo. Seguidores dessa tradição, violonistas como Gilvan de
Oliveira, Weber Lopes, os irmãos Beto e Wilson Lopes, entre outros, dão
continuidade a essa corrente, que a cada instante ganha novos adeptos.
Todos voltados para a criação e continuação da música que se notabilizou
pelo apuro técnico a serviço da sofisticação.
No campo didático,
tivemos importantes violonistas professores, como José Lucena,
responsável pela primeira cadeira de violão em uma universidade (UFMG),
hoje muito bem representada pelo violonista Fernando Araújo, e
violonistas experimentadores, como Teodomiro Goulart. que, com grande
arrojo, desenvolveu um importante sistema de ensino do instrumento e da
música, tornando-se, também como compositor, uma referência para o
repertório moderno do instrumento.
As influências foram se
desdobrando e sendo passadas como herança de uns para os outros. Com
isso foi cultivado em nosso meio uma espécie de inquietude que dá à
música mineira uma qualidade ímpar embasada pela irreverência e,
sobretudo, pelo alheamento aos modismos e à música de entretenimento
praticada por gravadoras do eixo Rio – São Paulo.
Violonistas
como Aliéksey Vianna, Tabajara Belo, Humberto Junqueira, Thiago
Delegado, Lucas Telles, Frederico Hermann, Guilherme Koeppel, Ronaldo
Cadeu, Guilherme Vincens, Sílvio Carlos e Carlos Walter, entre outros
tantos, garantem um futuro produtivo e criativo para o violão em Minas
Gerais.
De suas cordas e da fusão de estilos podemos ouvir e
perpetuar os ecos do passado, quando se podia ouvir um violão com
harmonias arrojadas que brotavam das ruas e janelas da Sagrada Família e
do Horto, em Belo Horizonte, e encantavam as serestas mineiras.
Geraldo Viana é violonista e compositor.
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