A voz da canção - Olívia Hime
O Globo - 18/11/2012
Impossível não pensar ou não tentar penetrar em uma canção: cada modulação, cada desenho melódico. E as palavras!
Magia pura!Como
toda criança, desde muito miudinha me interessava em saber o que havia
por dentro das coisas.
Destripei alguns peixes, violei o forro de
bonecas, busquei revelações dentro das caixas azul-marinho de Modess de
minha mãe, com a sensação constante de que havia algum segredo, uma
essência, alguma coisa anterior ao meu olhar e que cabia a mim
desvendar.
Veio a adolescência, veio a psicanálise e, finalmente, veio a música - as canções e seus mistérios.
Assim entendo a relação do intérprete com as canções. Não que eu deseje
ver as canções violadas, desforradas, destripadas, assim como fiz com o
abdômen de meus pobres peixinhos. Muito pelo contrário. Porém,
impossível não pensar ou não tentar penetrar em uma canção: cada
modulação, cada desenho melódico. E as palavras! Palavras que, a cada
vez que você as repete, transformam-se em outras. Magia pura! Toda
grande canção, toda poesia é prismática. As leituras são tantas! As
possibilidades se revelam quanto mais você as ouve, estuda, repete.
Aliás, em francês a palavra "ensaio" é "repetition". É isso: uma canção
tem que ser repetida tantas e tantas vezes e um pouco mais. A ponto de
se tornar um pouco sua.
Eu diria que existem três tipos de
intérpretes: aquele cujo instrumento vocal ou musical e sua técnica
bastam para que realize a proeza de trazer a canção a público – o
artista virtuoso.
O que "usa" a música: invadindo, interferindo
sem, na verdade, ouvi-la. Sem ter a paciência de deixar que ela lhe
cochiche algum segredo. Usa e abusa da pobre canção, cometendo floreios,
firulas, mudando melodias, repetindo versos aleatoriamente e Deus sabe o
que mais. Pior de tudo, vangloria-se da meta alcançada: deformar
canções.
Finalmente, existe o intérprete que se torna
cúmplice da canção. Que poderá interpretá-la mil vezes seguidas e nunca
será igual. Aquele que ama aquela canção com tamanha paixão que, por
vezes, seu autor se enciúma. Que se desnuda de tal forma diante daquela
melodia, daqueles versos, que jura que seu autor entrou em seus
devaneios e psicografou seus sentimentos.
Não só quem
interpreta, cantando ou tocando, vai em busca da voz da canção. Também o
parceiro de uma música já criada tem a árdua tarefa de tentar decifrar o
que se esconde nas dobras daquela canção, já criada. Ao receber uma
música para colocar palavras ou vice-versa, se um poema for musicado,
cabe a quem chegou depois desvendar a questão que tanto me intrigava na
infância: o que já existe dentro das coisas, das pessoas, das canções e
como chegar até lá?
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