domingo, 18 de novembro de 2012

O ‘muso’ dos NOVÍSSIMOS

O Globo - 18/11/2012

Aos 66 anos, Júlio Bressane é o único cineasta veterano escalado para a Semana dos Realizadores,
dedicada à produção independente nacional, na qual vai exibir um de seus dois filmes inéditos


Júlio Bressane. “Há muitos filmes que fizeram renda mínima ou sequer foram exibidos, mas ficaram na memória

CARLOS HELÍ DE ALMEIDA

carlos.heli@oglobo.com.br

Júlio Bressane reconhece que faz filmes para poucos, alimentado pela curiosidade e pela experimentação, e que não tem vocação para blockbuster. Mas o autor de títulos essenciais para a oxigenação da atividade no país como “Tabu” (1982) também tem certeza de que, embora minoria em um mercado ávido por sucessos de bilheteria, o cinema feito à margem dos padrões comerciais nunca sairá de cartaz, porque sempre haverá para quem passar o bastão.

— O fio dessa experimentação, que é o que ficou de bom do cinema brasileiro, nunca se extinguirá,
porque as gerações de diretores com sensibilidade para esse tipo de filme se renovam — afirma o realizador carioca, único veterano ainda em atividade com filme escalado para a quarta edição da Semana dos Realizadores, mostra dedicada à produção independente nacional, que acontece entre a próxima quinta-feira e o dia 29, no Espaço Itaú de Cinema. — Sempre teremos jovens diretores com uma sensibilidade que não é a dominante, mas que tem fulgurância, e que servirá de guia para as pessoas.

Longe das telas e dos festivais desde “A erva do rato” (2008), Bressane retorna aos braços de seus admiradores e pupilos (confessos ou não) com “Rua Aperana 52”, que ganhará projeção única no dia 24, às 19h. Lançado no Festival de Roterdã, em janeiro passado, dentro da seção Spectrum, voltada para trabalhos de mestres do cinema experimental, o filme refaz o percurso sentimental e geográfico de um endereço que durante décadas esteve ligado à família do realizador, a casa, no Leblon, onde Bressane passou a infância e parte da juventude.

Alimentado por fotos do álbum de família e filmes caseiros, realizados entre 1905 e 2009, e por trechos de seus longas-metragens rodados naquela região, que remontam a “Matou a família e foi ao cinema”, de 1969, e chegam até “Cleópatra” (2007), o longa-metragem fornece elementos para refletir sobre as transformações não só da casa, mas também da paisagem à sua volta. Muitas das imagens antigas foram feitas por um Bressane ainda jovem, com uma câmera de 16mm presenteada pela mãe, no fim dos anos 1950. Apesar do peso sentimental do material usado, o diretor diz que “Rua Aperana 52” tem pouco de autobiográfico.

— “Rua” não é uma biografia, mas um biografema, tem o indício do biográfico, essas coincidências com o pessoal, mas vai além — explica o diretor de 66 anos, que levou para o Festival de Roma um outro filme inédito, “O batuque dos astros”. — A partir de toda essa iconografia e iconologia que se produziu nessa paisagem em particular, inventei uma nova paisagem. Na verdade, é um filme de ficção, um jogo de xadrez de ficções que se intercalam, a das fotos, a dos fragmentos dos filmes caseiros, e também a das diversas ficções dos filmes que estão ali.

O biografema de Bressane é o mais radical dos títulos oferecidos pela Semana dos Realizadores, que inclui “Eles voltam”, do pernambucano Marcelo Lordello, e “Otto”, do mineiro Cao Guimarães, vencedores, respectivamente, do Candango de melhor ficção e de documentário do último Festival de Brasília. O filme se encaixa perfeitamente no conceito da programação oferecida pela mostra carioca, que inclui trabalhos em longa e curta-metragem e é frequentada por jovens realizadores que bebem na fonte do cinema de invenção perpetuado por Bressane.

— Ele faz um cinema de risco, que se apoia na tradição como chave para o novo — resume o carioca Bruno Safadi, de 32 anos, ex-assistente de Bressane em “Filme de amor” (2002) e diretor de “Belair” (2009), documentário sobre a mítica produtora que Bressane e Rogério Sganzerla fundaram em 1970. — O cinema dele é o que incorpora o melhor de nossa história musical, literária, cinematográfica, pictórica e poética, e que faz desse caldeirão cultural cinema.

SEM RECURSOS DE EDITAIS

Assim como “Rua Aperana 52”, “O batuque dos astros” reúne um repertório de imagens associadas ao trabalho do cineasta para fazer um tributo ao poeta português Fernando Pessoa (1888-1935). Aqui, ele também usa extratos de seus trabalhos para construir, nas palavras do diretor, um “geofilme, montado a partir de elementos geográficos de Pessoa, fazendo uma relação entre o transplante do poeta de Portugal e o cinema brasileiro”. Mesmo quando recorre ao seu universo particular, Bressane parece apontar novos rumos a partir dele.

— Bressane é um nome algumas vezes visto como de um cinema voltado para si, mas ele é, na verdade, nosso cineasta mais generoso na forma como olha e se declara ao mundo-cinema: da pornochanchada ao mais encastelado cinema autoral — elabora o também carioca Felipe Bragança (“A alegria”), 32 anos, outro admirador da obra do cineasta. — É um fio de tradição carioca, especialmente, que é uma trincheira contra o conformismo do cinema autoral, ameaça pela qual passamos a cada dia neste Brasil de hoje, onde a arte começa a ser empacotada como espaço da eficácia estética.

Os dois novos filmes só se tornaram viáveis graças ao apoio do Canal Brasil.

— Não consigo mais ganhar recursos de editais. A razão, desconheço, mas pode ser tudo, menos mercado — acredita Bressane. — Mas eu não reclamo. Ninguém lembra do grande sucesso de bilheteria de 2009, mas há muitos filmes que fizeram renda mínima e outros até que sequer foram exibidos, mas ficaram na memória. O paradigma disso é “Limite” (1931), de Mário Peixoto (1910-1992). Nem visto foi, mas a tradição ficou, e hoje tem mais adeptos e espectadores que muito filme comercial por aí.

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