domingo, 18 de novembro de 2012

Nada foi em vão (Obra de Gonzaguinha) - Sérgio Rodrigo Reis‏

Obra de Gonzaguinha mantém o vigor, 21 anos depois de sua morte. Compositor deixou letras inéditas, anotadas de próprio punho, no escritório de sua casa, em Belo Horizonte 

Sérgio Rodrigo Reis
Estado de Minas: 18/11/2012 
O dia 22 de outubro de 1990 parecia encerrar um ciclo na vida de Gonzaguinha, que acabara de concluir o caderno de letras de seu novo LP. Satisfeito com o resultado, ele deixou naquelas páginas algo que soou como despedida: uma espécie de diário, síntese de seu processo de criação. Sentia-se num ano de mudanças. Revelava não ser tão simples assim um carioca morar em Minas e trabalhar no sertão, pois tentava viabilizar o museu dedicado ao pai, Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, na cidade pernambucana de Exu.

“Tudo se torna fácil pelo crédito deixado por meu pai somado ao crédito que, felizmente, eu também tenho. (...) O ponteiro oscila. Aposto no ano um. Serei legal (Falta pouco)”, anotou Gonzaguinha. Seis meses depois, ele morreu no Paraná, aos 45 anos, vítima de acidente de carro. Não chegou a lançar o disco Cavaleiro solitário (nome de uma das canções, que também soa emblemática), mas deixou gravadas as vozes de todas as faixas. O último álbum só chegou a público dois anos depois da tragédia, com 12 das letras do último caderno. Permanecem inéditas, à espera de melodia, as ecológicas Panamazônica e O espelho das águas do Itamarangi, além de Coração, Salve, Aço e Caran, entre outras.

O legado de Gonzaguinha está bem guardado em Belo Horizonte, onde ele se casou e viveu os últimos 10 anos. O escritório de sua casa, na Pampulha, está como ele deixou, com livros, discos de ouro, álbuns, o último violão e fotos. Naqueles cadernos ficou sua preciosa herança: a palavra. 

“Até hoje, Gonzaga sustenta a família dele com direito autoral”, revela a viúva, Louise Martins, a Lelete. Mesmo assim, ela aponta a falta de memória dos brasileiros. Poucos jovens o conhecem, enquanto sua obra leva a pecha de datada, porta-voz do Brasil das décadas de 1970 e 1980. Durante seus 20 anos de carreira, o compositor chegou ao topo da lista de arrecadação de direitos autorais, batendo Roberto Carlos. Suas composições, com forte teor político, social ou sentimental, fizeram sucesso em discos dele e de Maria Bethânia, Fagner e Elis Regina, entre outros.

Os últimos anos de Gonzaguinha não foram fáceis. O estouro do rock fez minguar a agenda de astros da MPB. Ele aproveitou essa fase para se organizar: montou estúdio em casa, fundou a produtora Ação para agenciar sua carreira e também a de Guilherme Arantes, Lobão e Lulu Santos. Recomprou os direitos sobre a própria obra. “Economista, ele era um homem de visão e usou isso bem”, lembra Louise. Teve tempo para dar assistência a Gonzagão, que enfrentava problemas de saúde.

Louise saía cedo para trabalhar, Gonzaguinha cuidava da pequena Mariana. “Ficávamos juntos do café da manhã até a noite. Aprendi a ler antes de entrar na escola”, conta a caçula, que perdeu o pai aos 7 anos. “Ele era centrado, pé no chão e bastante organizado. A indústria fonográfica trabalhava com adiantamento e meu pai optou por cuidar da própria obra, antecipando-se ao modelo como vários artistas trabalham atualmente”, compara a caçula. “A obra de meu pai é toda verdade. Hoje, as pessoas não querem mais sentimentos reais, sejam eles de luta ou de amor. Minha geração deveria se preocupar com isso. Para mim, 99% dos que estão na mídia não acreditam no que fazem”, diz Mariana. De outros relacionamentos, Gonzaguinha deixou também os filhos Daniel, Fernanda e Amora.

Na Pampulha Os cadernos guardados por Lelete revelam um compositor atento a seus intérpretes. Gonzaguinha deixou anotado: Aprender a sorrir era de Gilberto Gil. Bonito foi feita para o grupo Os Cariocas – acabou gravada por Alcione e por seus “donos”. A Caetano Veloso era destinada Claro. “Baixo, bateria, percussão, sax, teclados e violão”, determinou o compositor, de próprio punho.

Um dos refrões mais queridos do compositor surgiu por acaso em BH, num réveillon na casa de seu amigo, o compositor Fernando Brant. Lá pelas tantas, Gonzaguinha começou a perguntar aos convidados o que era a vida. Uma criança soltou: “É bonita, é bonita e é bonita”.

Gonzagão passava temporadas em BH. Depois de anos de desentendimentos, a dupla se acertou e Gonzaguinha gostava de entrevistá-lo. “Ele pegava o atlas e perguntava ao pai se havia passado por aqueles lugares. Dali surgiam as histórias e a gente morria de rir. Meu marido tinha a intenção de fazer um livro com tudo aquilo”, revela Louise. Gravadas em fitas cassete, as conversas serviram de base para o cineasta Breno Silveira filmar Gonzaga – De pai para filho, que entrou em cartaz em outubro.

A ÚLTIMA CANÇÃO 
Cavaleiro solitário

Atravessei a rua/ Atravessei a vida/ Acreditei que era perto e fui lá ver/ Acreditei que era perto e fui.../ Cavaleiro solitário/ Caminha com sua estrela/ E a fé no Vaticano das visões/ Inventa o próprio tempo e estações/ Atrai as reações mais loucas/ Pessoas diferentes são irmãs/ Todos os seus companheiros são iguais/ Iguais e diferentes e irmãos/ Mil trovões, num encontro de titãs, ô, ô/ Perdão, oh minha amada/ Eu nunca voltarei/ Do mesmo modo/ Como um dia eu saí/ A vida não tem replay/ Há muito eu sei/ Foi tudo maravilhoso/ Até a hora em que eu parti/ Há muito tempo/ Cavaleiro solitário...

Blockbuster nacional
Em três semanas de exibição, o longa Gonzaga – De pai para filho, dirigido por Breno Silveira, superou a marca de 1 milhão de espectadores. O papel de Gonzaguinha coube a três atores: Julio Andrade, Diancarlo di Tommaso e Alison Santos.

Memória
Moleque do Estácio

Luiz Gonzaga Júnior nasceu em 22 de setembro de 1945. Aos 2 anos, perdeu a mãe, Odaleia Santos, de tuberculose. Foi criado pelos padrinhos no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro. A relação com o pai, Gonzagão, e a madrasta, Helena, foi marcada por conflitos. Formado em economia, chamou a atenção ao chegar às finais do 1º Festival Universitário de Música Popular do Rio de Janeiro, em 1968. Em 1976, seu disco Começaria tudo outra vez estourou. Depois de lançar 16 álbuns, Gonzaguinha morreu em acidente de carro, em 1991, quando voltava de um show em Pato Branco, no Paraná.

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