João Paulo
Estado de MInas: 22/12/2012
Honoré de Balzac viveu pouco mais de 50 anos. Entre seu nascimento, em 1799, em Tours, e a morte em 1850, em Paris, escreveu nada menos de 88 romances e contos que fazem parte de um conjunto único, ao qual deu o nome de A comédia humana. No entanto, o escritor só começa a assinar suas obras com o próprio nome aos 30 anos, o que dá apenas 20 de tempo para criação. Antes disso, trabalhou muito, mas seguindo modelos populares que depois renegou. Todo o esforço de Balzac na criação de seu monumento literário resultou na maior realização do que chamamos hoje de romance. No mundo da literatura, há antes e depois de Balzac.
A comédia humana, como o nome explicita, fala de gente. Se Dante edificou sua catedral poética com a Divina comédia, Balzac trouxe a história para a vida de pessoas comuns, vivendo os problemas de pessoas comuns. Humana, demasiado humana, a obra de Balzac é o mais completo retrato da sociedade francesa do século 19, o século de ouro do romance. E é esse colosso que chega ao leitor brasileiro em edição planejada para 17 grossos volumes (em torno de 900 páginas cada), em trabalho coordenado pelo tradutor Paulo Rónai (1907-1992) entre 1946 e 1955. É a terceira edição completa da obra, que já está com os quatro primeiros volumes nas livrarias pela Biblioteca Azul, da Editora Globo. Numa edição convencional, como muitas editadas na França, A comédia humana teria algo em torno de 50 volumes.
A obra balzaquiana é a realização do romance na sociedade burguesa. Sua construção, no entanto, não foi tranquila nem fácil. Balzac escreveu aos borbotões, muitas vezes para pagar dívidas, publicava em diversas revistas e jornais, lançava livros que depois retomava e revisava ao ponto de alterar toda a trama e, muitas vezes, escrevia vários livros ao mesmo tempo.
O plano, se existia, estava em sua cabeça, como revelam as cartas que deixou às amantes. Além de tudo, Balzac teve uma vida amorosa confusa e uma atuação desastrosa como empresário, político e editor. Para completar o rol de dificuldades, o escritor era o menos francês dos franceses: onde se esperava clareza, era derramado e excessivo; no lugar do rigor da razão, o derramamento da emoção; em vez do bom gosto, a desmedida.
No entanto, além da potência narrativa e criadora, Balzac teve a genialidade de perceber que no interior de suas obras tudo se comunicava. Desse estalo, em 1833, veio a ideia de fazer os personagens aparecerem em várias obras, em diferentes momentos de suas vidas, com funções diversas na economia narrativa. Um personagem pode ser principal em um romance para voltar secundário em um conto. O incrível é que, sem tempo para maiores esquemas e planejamentos, Balzac foi tocando seu empreendimento com uma segurança absoluta, com a memória exata de todos os personagens que habitam suas mais de 11 mil páginas. As notas de Paulo Rónai são um fio de Ariadne nesse labirinto. E, morto ainda relativamente jovem, Balzac deixou inconclusa A comédia humana, que, como revelou em sua correspondência, chegaria a 137 obras no lugar das 88 que deixou prontas.
Se Balzac, como muitos criticam, não aprendeu nada do comedido espírito francês, nem por isso deixou de ser um dos responsáveis pela imagem da França que ainda hoje se cultua no mundo. Para muitos historiadores e sociólogos, não há melhor porta de entrada para o país e sua época. Conservador e monarquista, Balzac ganhou admiração irrestrita dos comunistas Marx e Engels, que tinham no escritor o melhor analista dos equívocos econômicos, políticos e humanos do capitalismo. Ninguém mostrou com mais clareza o poder do dinheiro. Na verdade, em vários momentos, a grana com sua força criadora e corruptora é o grande personagem do escritor. O Balzac artista foi sempre maior que o Balzac político e, por isso mesmo, mais sábio e desimpedido. O autor da Comédia não pode ser considerado reacionário nem socialista. No terreno minado da política ele foi balzaquiano para uso de monarquistas e comunistas. Sua obra não padece das ilusões do romantismo social nem do reacionarismo panfletário.
Um dos aspectos que diferenciam Balzac dos românticos convencionais é sua relação com o casamento. O que para os escritores populares era a finalidade da vida, para Balzac, era apenas o começo. Seus dramas de amor não terminam em casamento, quase sempre começam com ele. E, na verdade, mais que um empreendimento de afeto, as relações amorosas são uma derivação do mundo dos negócios. As mulheres e homens se casam para se dar bem. O amor é apenas um ingrediente a mais nessa grande comédia humana. No seu astuto maquiavelismo do comportamento burguês, Balzac deu origem à literatura moderna, mesmo que defendesse valores pré-modernos.
A comédia humana foi dividida por Balzac em três blocos. O primeiro e maior deles, “Estudos de costumes”, vai abranger 14 volumes da nova edição e é subdividido em seis cenas: da vida privada, da vida provinciana, da vida parisiense, da vida política, da vida militar e da vida rural. A segunda parte, que ocupará dois volumes, ganhou o nome de “Estudos filosóficos”. Por fim, o último volume foi batizado de “Estudos analíticos”. O gosto pelas classificações – mais românticas que propriamente científicas – se infiltra ainda nessas categorias formais (estudos e cenas) para chancelar novelas e contos que respondem por intenções bem definidas, como “Os parisienses de província”, “Os celibatários” e “Os parentes pobres”, entre outros, que dão o mote de uma série de livros unidos pelos mesmos propósitos.
Erudito e amigável
O trabalho de Paulo Rónai é considerado ainda hoje um modelo em matéria de edição. Estudioso da obra de Balzac quando ainda vivia em seu país natal, Rónai aceitaria o convite da Editora Globo para escrever um prefácio da obra completa de Balzac que a editora gaúcha planejava lançar nos anos 40. A encomenda se tornou um trabalho de coordenação geral do esforço de 20 tradutores. Além de unificar a linguagem e dar estrutura à edição, Paulo Rónai produziu um alentado prefácio, “A vida de Balzac”, e fez nada menos de 12 mil notas, além de escrever 89 apresentações, uma para cada conto ou romance.
Na primeira fornada que chega aos leitores, além dos quatro primeiros volumes das obras de Balzac, a Editora Globo está entregando ao público um livro que reúne ensaios de Paulo Rónai dedicados a Balzac. Em Balzac e A comédia humana, o leitor tem uma amostra do estilo ao mesmo tempo erudito e acessível de Rónai, algo pouco comum no campo dos estudos literários.
Os textos são “O mundo de Balzac”, que trata da gênese e organização da obra balzaquiana; “O Pai Goriot dentro da literatura universal”, um estudo monográfico sobre uma das mais geniais obras de Balzac, numa aula de literatura comparada que vai de Platão a Eça de Queirós; “Balzac contista”, sobre a face menos valorizada do romancista dos grandes painéis, que propõe uma classificação e funcionalidade dos contos do escritor dentro do projeto da obra; “O estilo de Balzac”, que destaca os elementos constitutivos do estilo balzaquiano; “Paris, personagem de Balzac”, ensaio que mostra a cidade tanto como cenário quanto como personagem quase humano em seus caprichos; e o curioso “O Brasil na vida e obra de Balzac”, que mostra o que nosso país significava no contexto europeu do período, além de destacar um personagem brasileiro na Comédia humana (um fazendeiro rico, é claro).
Balzac não tem hoje o mesmo prestígio e atualidade. O mundo é outro. Há mesmo no desequilíbrio de sua obra motivos de sobra para considerá-la exagerada e por vezes datada. Por que, então, não se concentrar apenas nas grandes obras-primas, como Pai Goriot, Prima Bette, Eugênia Grandet e Ilusões perdidas, por exemplo, e derivar daí o estilo e as lições filosóficas do conjunto?
No entanto, para quem gosta de romances, Balzac parece inspirar outro tipo de aproximação. Há autores que trazem em si um sistema de pensamento, outros que esmeram na criação de personagens, e ainda os que destilam a crônica de seu tempo sem preocupação em tirar daí qualquer conclusão. Balzac parece ter unido as três dimensões com sua obra: foi filósofo, romancista e historiador.
O mais impressionante foi criar tudo isso a partir da realidade material que o cercava, mesmo com limitações pessoais de toda ordem. O conhecimento, a literatura e a ciência são emanações do homem em situação. Por isso a comédia. Por isso humana.
A COMÉDIA HUMANA – VOLUMES 1 a 4
. De Honoré de Balzac
. Editora Biblioteca Azul, R$ 74,90 cada
BALZAC E A COMÉDIA HUMANA
. De Paulo Rónai
. Editora Biblioteca Azul, 256 páginas, R$ 39,90
A comédia humana, como o nome explicita, fala de gente. Se Dante edificou sua catedral poética com a Divina comédia, Balzac trouxe a história para a vida de pessoas comuns, vivendo os problemas de pessoas comuns. Humana, demasiado humana, a obra de Balzac é o mais completo retrato da sociedade francesa do século 19, o século de ouro do romance. E é esse colosso que chega ao leitor brasileiro em edição planejada para 17 grossos volumes (em torno de 900 páginas cada), em trabalho coordenado pelo tradutor Paulo Rónai (1907-1992) entre 1946 e 1955. É a terceira edição completa da obra, que já está com os quatro primeiros volumes nas livrarias pela Biblioteca Azul, da Editora Globo. Numa edição convencional, como muitas editadas na França, A comédia humana teria algo em torno de 50 volumes.
A obra balzaquiana é a realização do romance na sociedade burguesa. Sua construção, no entanto, não foi tranquila nem fácil. Balzac escreveu aos borbotões, muitas vezes para pagar dívidas, publicava em diversas revistas e jornais, lançava livros que depois retomava e revisava ao ponto de alterar toda a trama e, muitas vezes, escrevia vários livros ao mesmo tempo.
O plano, se existia, estava em sua cabeça, como revelam as cartas que deixou às amantes. Além de tudo, Balzac teve uma vida amorosa confusa e uma atuação desastrosa como empresário, político e editor. Para completar o rol de dificuldades, o escritor era o menos francês dos franceses: onde se esperava clareza, era derramado e excessivo; no lugar do rigor da razão, o derramamento da emoção; em vez do bom gosto, a desmedida.
No entanto, além da potência narrativa e criadora, Balzac teve a genialidade de perceber que no interior de suas obras tudo se comunicava. Desse estalo, em 1833, veio a ideia de fazer os personagens aparecerem em várias obras, em diferentes momentos de suas vidas, com funções diversas na economia narrativa. Um personagem pode ser principal em um romance para voltar secundário em um conto. O incrível é que, sem tempo para maiores esquemas e planejamentos, Balzac foi tocando seu empreendimento com uma segurança absoluta, com a memória exata de todos os personagens que habitam suas mais de 11 mil páginas. As notas de Paulo Rónai são um fio de Ariadne nesse labirinto. E, morto ainda relativamente jovem, Balzac deixou inconclusa A comédia humana, que, como revelou em sua correspondência, chegaria a 137 obras no lugar das 88 que deixou prontas.
Se Balzac, como muitos criticam, não aprendeu nada do comedido espírito francês, nem por isso deixou de ser um dos responsáveis pela imagem da França que ainda hoje se cultua no mundo. Para muitos historiadores e sociólogos, não há melhor porta de entrada para o país e sua época. Conservador e monarquista, Balzac ganhou admiração irrestrita dos comunistas Marx e Engels, que tinham no escritor o melhor analista dos equívocos econômicos, políticos e humanos do capitalismo. Ninguém mostrou com mais clareza o poder do dinheiro. Na verdade, em vários momentos, a grana com sua força criadora e corruptora é o grande personagem do escritor. O Balzac artista foi sempre maior que o Balzac político e, por isso mesmo, mais sábio e desimpedido. O autor da Comédia não pode ser considerado reacionário nem socialista. No terreno minado da política ele foi balzaquiano para uso de monarquistas e comunistas. Sua obra não padece das ilusões do romantismo social nem do reacionarismo panfletário.
Um dos aspectos que diferenciam Balzac dos românticos convencionais é sua relação com o casamento. O que para os escritores populares era a finalidade da vida, para Balzac, era apenas o começo. Seus dramas de amor não terminam em casamento, quase sempre começam com ele. E, na verdade, mais que um empreendimento de afeto, as relações amorosas são uma derivação do mundo dos negócios. As mulheres e homens se casam para se dar bem. O amor é apenas um ingrediente a mais nessa grande comédia humana. No seu astuto maquiavelismo do comportamento burguês, Balzac deu origem à literatura moderna, mesmo que defendesse valores pré-modernos.
A comédia humana foi dividida por Balzac em três blocos. O primeiro e maior deles, “Estudos de costumes”, vai abranger 14 volumes da nova edição e é subdividido em seis cenas: da vida privada, da vida provinciana, da vida parisiense, da vida política, da vida militar e da vida rural. A segunda parte, que ocupará dois volumes, ganhou o nome de “Estudos filosóficos”. Por fim, o último volume foi batizado de “Estudos analíticos”. O gosto pelas classificações – mais românticas que propriamente científicas – se infiltra ainda nessas categorias formais (estudos e cenas) para chancelar novelas e contos que respondem por intenções bem definidas, como “Os parisienses de província”, “Os celibatários” e “Os parentes pobres”, entre outros, que dão o mote de uma série de livros unidos pelos mesmos propósitos.
Erudito e amigável
O trabalho de Paulo Rónai é considerado ainda hoje um modelo em matéria de edição. Estudioso da obra de Balzac quando ainda vivia em seu país natal, Rónai aceitaria o convite da Editora Globo para escrever um prefácio da obra completa de Balzac que a editora gaúcha planejava lançar nos anos 40. A encomenda se tornou um trabalho de coordenação geral do esforço de 20 tradutores. Além de unificar a linguagem e dar estrutura à edição, Paulo Rónai produziu um alentado prefácio, “A vida de Balzac”, e fez nada menos de 12 mil notas, além de escrever 89 apresentações, uma para cada conto ou romance.
Na primeira fornada que chega aos leitores, além dos quatro primeiros volumes das obras de Balzac, a Editora Globo está entregando ao público um livro que reúne ensaios de Paulo Rónai dedicados a Balzac. Em Balzac e A comédia humana, o leitor tem uma amostra do estilo ao mesmo tempo erudito e acessível de Rónai, algo pouco comum no campo dos estudos literários.
Os textos são “O mundo de Balzac”, que trata da gênese e organização da obra balzaquiana; “O Pai Goriot dentro da literatura universal”, um estudo monográfico sobre uma das mais geniais obras de Balzac, numa aula de literatura comparada que vai de Platão a Eça de Queirós; “Balzac contista”, sobre a face menos valorizada do romancista dos grandes painéis, que propõe uma classificação e funcionalidade dos contos do escritor dentro do projeto da obra; “O estilo de Balzac”, que destaca os elementos constitutivos do estilo balzaquiano; “Paris, personagem de Balzac”, ensaio que mostra a cidade tanto como cenário quanto como personagem quase humano em seus caprichos; e o curioso “O Brasil na vida e obra de Balzac”, que mostra o que nosso país significava no contexto europeu do período, além de destacar um personagem brasileiro na Comédia humana (um fazendeiro rico, é claro).
Balzac não tem hoje o mesmo prestígio e atualidade. O mundo é outro. Há mesmo no desequilíbrio de sua obra motivos de sobra para considerá-la exagerada e por vezes datada. Por que, então, não se concentrar apenas nas grandes obras-primas, como Pai Goriot, Prima Bette, Eugênia Grandet e Ilusões perdidas, por exemplo, e derivar daí o estilo e as lições filosóficas do conjunto?
No entanto, para quem gosta de romances, Balzac parece inspirar outro tipo de aproximação. Há autores que trazem em si um sistema de pensamento, outros que esmeram na criação de personagens, e ainda os que destilam a crônica de seu tempo sem preocupação em tirar daí qualquer conclusão. Balzac parece ter unido as três dimensões com sua obra: foi filósofo, romancista e historiador.
O mais impressionante foi criar tudo isso a partir da realidade material que o cercava, mesmo com limitações pessoais de toda ordem. O conhecimento, a literatura e a ciência são emanações do homem em situação. Por isso a comédia. Por isso humana.
A COMÉDIA HUMANA – VOLUMES 1 a 4
. De Honoré de Balzac
. Editora Biblioteca Azul, R$ 74,90 cada
BALZAC E A COMÉDIA HUMANA
. De Paulo Rónai
. Editora Biblioteca Azul, 256 páginas, R$ 39,90
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