Gustavo Fonseca
Estao de Minas: 22/12/2012
Com a evolução das artes plásticas no século 19 e as seguidas revoluções desencadeadas pelos movimentos modernistas do século 20, os limites da arte acabaram por se tornar tênues, a ponto de alguns teóricos, como o filósofo norte-americano Arthur Danto (1924), decretarem seu fim. No Brasil, o filósofo e crítico de artes Lorenzo Mammì vem se dedicando a essas e outras questões relacionadas aos caminhos da arte há mais de três décadas e reuniu 37 de seus escritos em O que resta: arte e crítica de arte, coletânea de artigos para jornais, ensaios para revistas especializadas, fôlderes e catálogos para exposições, entre outros gêneros textuais. Com farto material iconográfico, o livro perpassa os temas basilares da arte contemporânea em constante diálogo com os principais estudiosos do assunto.
Na primeira parte, estão cinco ensaios mais abrangentes e, de certa maneira, os textos fundamentais do pensamento de Mammì, síntese de suas reflexões sobre a história da arte e os rumos desencontrados das múltiplas correntes da arte contemporânea. No mais expressivo deles, “Mortes recentes da arte”, o autor refaz a trajetória das artes plásticas modernas e contemporâneas (ou pós-modernas) esmiuçando as ideias de Danto e do historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992), segundo Mammì dois dos maiores representantes de suas respectivas correntes teóricas. Para Danto, na contemporaneidade, em tese, qualquer coisa pode ser considerada arte, passando os limites da arte a ser ponto de reflexão racional, não de evidência sensível. Daí o fim da arte, de acordo com o filósofo, como conjunto coerente e delimitado de objetos. Já para Argan, a obra de arte é um objeto histórico, sendo arte por encarnar um conteúdo histórico determinado num valor estético. Assim, para o historiador, não há uma essência do objeto artístico, mas uma função artística num sistema de valores.
Para Mammì, mais propenso à tese de Argan, com base numa perspectiva histórica é que se podem moldar instrumentos para a interpretação da arte contemporânea, não simplesmente uma posição conceitual, centrada no que seria a essência da arte, a característica definidora do que é um objeto de arte. Exemplificando sua argumentação, Mammì recorre a algumas obras do britânico Damien Hirst, como animais cortados ao meio ou em fatias, suspensos em formaldeído e expostos em vitrines. Segundo Mammì, “a imagem (das entranhas do animal) lembra as ilustrações dos manuais de zoologia e, no entanto, o corpo tem uma presença física incontornável, que carrega a obra e nosso olhar de crueldade”. Dessa forma, “se encontrássemos o mesmo objeto num museu de ciências naturais, poderíamos ficar impressionados, mas talvez não nos sentiríamos tão envolvidos moralmente”.
Como consequência, essas imagens que não são estritamente artísticas, bem ao gosto da arte contemporânea, só serão plenamente compreendidas, segundo Mammì, se o espectador já estiver disposto a crer que possam ser obras de arte, demandando portanto um elevado grau de envolvimento sensível e emocional. Na “arte tradicional”, ao contrário, como nos lembra o ensaísta, as marcas do fazer artístico são bem nítidas, como as telas e esculturas, com suas molduras e pedestais. Já na arte contemporânea, demanda-se do visitante muitas vezes ver aqueles objetos expostos com um viés estético. Caso não respondamos a eles como obras de arte, regridem a meras coisas. Uma falha do artista ou do público, podemos concluir. Ou do curador, figura cada vez mais central no mundo da arte, dando coerência e significado ao que é exposto. Ao crítico, formador de opinião por excelência, cabe a tarefa de interpretar e traduzir o que artista e curador propõem, com sucesso ou não.
Envolvimento
Neste ponto, cristaliza-se o que nos parece ser a questão central da arte contemporânea: o entendimento racional do que se expõe é suficiente para a caracterização estética da obra e o consequente envolvimento do espectador, impedindo que o objeto exposto regrida a “mera coisa”? Entender a proposta da música aleatória de John Cage, por exemplo, não é necessariamente apreciá-la. Nesse sentido, o bom crítico de artes plásticas, mais do que racionalizar sobre as obras, revela como e por que se envolveu com elas, ou como e por que não se envolveu com elas. É o que Lorenzo Mammì faz com propriedade nos textos da coletânea dedicados a artistas como Iberê Camargo, Nuno Ramos, Wesley Duke Lee, Ester Grinspum, Waltercio Caldas, José Resende e Mira Schendel, entre outros expoentes da arte contemporânea brasileira.
Em cada um desses textos, evidencia-se o entrelaçamento entre arte e crítica de arte (daí o subtítulo do livro), entre artista e crítico, sem subordinação de um a outro. Reforçando sua linha historicista, Mammì contextualiza as obras que analisa, refazendo a trajetória do autor e ou de sua escola estética e situando-os em comparação com o trabalho de seus pares, contemporâneos ou não, brasileiros ou estrangeiros, sempre extrapolando os limites de espaços artísticos convencionais, como museus e galerias, para melhor compreender o que se expõe neles. Em “Pichações e urubus”, por exemplo, para se posicionar quanto à polêmica obra Bandeira branca, de Nuno Ramos, exposta em 2010 na 29ª Bienal de São Paulo, Mammì recorre tanto à moda quanto ao rap; vai ao grafismo e à pichação, além de incluir em seu discurso ícones tão díspares como Coco Chanel e Jean-Luc Godard. Vendo na contestação da presença de urubus na obra sinal claro da incompreensão da arte contemporânea pelo público e por parte da crítica, o autor se vale da situação para exaltar Ramos (um “artista do caminho mais difícil, o que escolhe a solução menos esperada, a mais arriscada comercial e tecnicamente”) e relativizar o sucesso de projetos como a bienal, “um evento de massa baseado em obras que não falam uma linguagem de massa”. Daí a origem de mal-entendidos como o protagonizado por Nuno Ramos, de acordo com o articulista.
Em outro ensaio esclarecedor, “Isto, aquilo e o valor disso”, Mammì discute os limites das diferentes escolas da arte contemporânea ao examinar os quadros Target with plaster casts (1955), de Jasper Johns, e That (1958-9), de Kenneth Noland. Os dois foram pintados nos Estados Unidos na mesma década e têm elementos em comum, como a estrutura centralizada, cores e figuras semelhantes, mas foram tidos como delimitadores da passagem de uma época a outra na história da arte. É plausível esse marco? Para examinar a questão, Mammì volta à arte renascentista e avança rumo às diferentes correntes pós-modernas, como a pop art e o color field painting, cujo embate motiva o autor a rediscutir a autonomia do objeto de arte, valendo-se das ideias não apenas de críticos do século 20 como Argan, Danto e Clement Greenberg, que apoiou decisivamente a segunda geração dos abstracionistas americanos, entre os quais Noland, mas também de autores clássicos como Platão e Kant, em particular sua Crítica do juízo.
Na primeira parte, estão cinco ensaios mais abrangentes e, de certa maneira, os textos fundamentais do pensamento de Mammì, síntese de suas reflexões sobre a história da arte e os rumos desencontrados das múltiplas correntes da arte contemporânea. No mais expressivo deles, “Mortes recentes da arte”, o autor refaz a trajetória das artes plásticas modernas e contemporâneas (ou pós-modernas) esmiuçando as ideias de Danto e do historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992), segundo Mammì dois dos maiores representantes de suas respectivas correntes teóricas. Para Danto, na contemporaneidade, em tese, qualquer coisa pode ser considerada arte, passando os limites da arte a ser ponto de reflexão racional, não de evidência sensível. Daí o fim da arte, de acordo com o filósofo, como conjunto coerente e delimitado de objetos. Já para Argan, a obra de arte é um objeto histórico, sendo arte por encarnar um conteúdo histórico determinado num valor estético. Assim, para o historiador, não há uma essência do objeto artístico, mas uma função artística num sistema de valores.
Para Mammì, mais propenso à tese de Argan, com base numa perspectiva histórica é que se podem moldar instrumentos para a interpretação da arte contemporânea, não simplesmente uma posição conceitual, centrada no que seria a essência da arte, a característica definidora do que é um objeto de arte. Exemplificando sua argumentação, Mammì recorre a algumas obras do britânico Damien Hirst, como animais cortados ao meio ou em fatias, suspensos em formaldeído e expostos em vitrines. Segundo Mammì, “a imagem (das entranhas do animal) lembra as ilustrações dos manuais de zoologia e, no entanto, o corpo tem uma presença física incontornável, que carrega a obra e nosso olhar de crueldade”. Dessa forma, “se encontrássemos o mesmo objeto num museu de ciências naturais, poderíamos ficar impressionados, mas talvez não nos sentiríamos tão envolvidos moralmente”.
Como consequência, essas imagens que não são estritamente artísticas, bem ao gosto da arte contemporânea, só serão plenamente compreendidas, segundo Mammì, se o espectador já estiver disposto a crer que possam ser obras de arte, demandando portanto um elevado grau de envolvimento sensível e emocional. Na “arte tradicional”, ao contrário, como nos lembra o ensaísta, as marcas do fazer artístico são bem nítidas, como as telas e esculturas, com suas molduras e pedestais. Já na arte contemporânea, demanda-se do visitante muitas vezes ver aqueles objetos expostos com um viés estético. Caso não respondamos a eles como obras de arte, regridem a meras coisas. Uma falha do artista ou do público, podemos concluir. Ou do curador, figura cada vez mais central no mundo da arte, dando coerência e significado ao que é exposto. Ao crítico, formador de opinião por excelência, cabe a tarefa de interpretar e traduzir o que artista e curador propõem, com sucesso ou não.
Envolvimento
Neste ponto, cristaliza-se o que nos parece ser a questão central da arte contemporânea: o entendimento racional do que se expõe é suficiente para a caracterização estética da obra e o consequente envolvimento do espectador, impedindo que o objeto exposto regrida a “mera coisa”? Entender a proposta da música aleatória de John Cage, por exemplo, não é necessariamente apreciá-la. Nesse sentido, o bom crítico de artes plásticas, mais do que racionalizar sobre as obras, revela como e por que se envolveu com elas, ou como e por que não se envolveu com elas. É o que Lorenzo Mammì faz com propriedade nos textos da coletânea dedicados a artistas como Iberê Camargo, Nuno Ramos, Wesley Duke Lee, Ester Grinspum, Waltercio Caldas, José Resende e Mira Schendel, entre outros expoentes da arte contemporânea brasileira.
Em cada um desses textos, evidencia-se o entrelaçamento entre arte e crítica de arte (daí o subtítulo do livro), entre artista e crítico, sem subordinação de um a outro. Reforçando sua linha historicista, Mammì contextualiza as obras que analisa, refazendo a trajetória do autor e ou de sua escola estética e situando-os em comparação com o trabalho de seus pares, contemporâneos ou não, brasileiros ou estrangeiros, sempre extrapolando os limites de espaços artísticos convencionais, como museus e galerias, para melhor compreender o que se expõe neles. Em “Pichações e urubus”, por exemplo, para se posicionar quanto à polêmica obra Bandeira branca, de Nuno Ramos, exposta em 2010 na 29ª Bienal de São Paulo, Mammì recorre tanto à moda quanto ao rap; vai ao grafismo e à pichação, além de incluir em seu discurso ícones tão díspares como Coco Chanel e Jean-Luc Godard. Vendo na contestação da presença de urubus na obra sinal claro da incompreensão da arte contemporânea pelo público e por parte da crítica, o autor se vale da situação para exaltar Ramos (um “artista do caminho mais difícil, o que escolhe a solução menos esperada, a mais arriscada comercial e tecnicamente”) e relativizar o sucesso de projetos como a bienal, “um evento de massa baseado em obras que não falam uma linguagem de massa”. Daí a origem de mal-entendidos como o protagonizado por Nuno Ramos, de acordo com o articulista.
Em outro ensaio esclarecedor, “Isto, aquilo e o valor disso”, Mammì discute os limites das diferentes escolas da arte contemporânea ao examinar os quadros Target with plaster casts (1955), de Jasper Johns, e That (1958-9), de Kenneth Noland. Os dois foram pintados nos Estados Unidos na mesma década e têm elementos em comum, como a estrutura centralizada, cores e figuras semelhantes, mas foram tidos como delimitadores da passagem de uma época a outra na história da arte. É plausível esse marco? Para examinar a questão, Mammì volta à arte renascentista e avança rumo às diferentes correntes pós-modernas, como a pop art e o color field painting, cujo embate motiva o autor a rediscutir a autonomia do objeto de arte, valendo-se das ideias não apenas de críticos do século 20 como Argan, Danto e Clement Greenberg, que apoiou decisivamente a segunda geração dos abstracionistas americanos, entre os quais Noland, mas também de autores clássicos como Platão e Kant, em particular sua Crítica do juízo.
Arte conceitual
No mesmo ensaio, Mammì aborda aquela que é considerada a mais conhecida obra do movimento da arte conceitual: One and three chairs (1965), de Joseph Kosuth, que estampa a capa e a contracapa da coletânea. Trata-se de uma cadeira, uma fotografia da mesma cadeira e uma definição de dicionário da palavra chair (cadeira). Ou seja, uma cadeira pode ser um objeto, sua imagem e sua definição. A materialização da proposta estética de Kosuth defendida no artigo “A arte depois da filosofia”, a bandeira da arte conceitual segundo Mammì. Passando a outras obras de Kosuth e analisando as diferentes montagens de One and three chairs, Mammì conclui que cada montagem refaz a obra e a autorreferência da arte não poderia ser desenvolvida em argumentações, sendo apenas reafirmada. “E o trabalho do crítico será mostrar como uma obra conceitual, se bem-sucedida, funciona afinal como uma obra renascentista: não pode ser reduzida nem a ideia nem a coisa. Produz o mundo a partir de sua inconformidade com o mundo.”
Na última seção do livro, “À parte”, Mammì foge da temática predominante e dedicada os ensaios “Sobre uma velha história de boxe” e “Mr. Voador” ao corpo a corpo dos lutadores e aos passos mágicos de Fred Astaire. No primeiro, contrapondo o embate entre Entelo e Dares, descrito por Virgílio na Eneida, ao épico confronto de Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire, em 1974. No segundo, revelando como Astaire conseguiu conciliar a dança como liberação do indivíduo e como trabalho, atividade produtiva. Em certo sentido, dois exemplos de atividades que não poderiam ser reduzidas a uma ideia ou uma coisa, produzindo o mundo a partir da inconformidade com o mundo. No caso do boxe, pela consciência dos contendores de seus limites físicos nesse jogo pela sobrevivência. No caso do dançarino, por sua genialidade em mover tão graciosamente um corpo tão pouco gracioso – muito magro, com braços compridos demais e uma cabeça desproporcionalmente grande. Nos dois textos, assim como em toda a coletânea, a comprovação da vitalidade da filosofia estética na contemporaneidade, muito além dos temas e das obras clássicas. Mas sem ignorá-los.
O que resta: arte e crítica de arte
. De Lorenzo Mammì
. Editora Companhia das Letras, 384 páginas, R$ 59,50
No mesmo ensaio, Mammì aborda aquela que é considerada a mais conhecida obra do movimento da arte conceitual: One and three chairs (1965), de Joseph Kosuth, que estampa a capa e a contracapa da coletânea. Trata-se de uma cadeira, uma fotografia da mesma cadeira e uma definição de dicionário da palavra chair (cadeira). Ou seja, uma cadeira pode ser um objeto, sua imagem e sua definição. A materialização da proposta estética de Kosuth defendida no artigo “A arte depois da filosofia”, a bandeira da arte conceitual segundo Mammì. Passando a outras obras de Kosuth e analisando as diferentes montagens de One and three chairs, Mammì conclui que cada montagem refaz a obra e a autorreferência da arte não poderia ser desenvolvida em argumentações, sendo apenas reafirmada. “E o trabalho do crítico será mostrar como uma obra conceitual, se bem-sucedida, funciona afinal como uma obra renascentista: não pode ser reduzida nem a ideia nem a coisa. Produz o mundo a partir de sua inconformidade com o mundo.”
Na última seção do livro, “À parte”, Mammì foge da temática predominante e dedicada os ensaios “Sobre uma velha história de boxe” e “Mr. Voador” ao corpo a corpo dos lutadores e aos passos mágicos de Fred Astaire. No primeiro, contrapondo o embate entre Entelo e Dares, descrito por Virgílio na Eneida, ao épico confronto de Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire, em 1974. No segundo, revelando como Astaire conseguiu conciliar a dança como liberação do indivíduo e como trabalho, atividade produtiva. Em certo sentido, dois exemplos de atividades que não poderiam ser reduzidas a uma ideia ou uma coisa, produzindo o mundo a partir da inconformidade com o mundo. No caso do boxe, pela consciência dos contendores de seus limites físicos nesse jogo pela sobrevivência. No caso do dançarino, por sua genialidade em mover tão graciosamente um corpo tão pouco gracioso – muito magro, com braços compridos demais e uma cabeça desproporcionalmente grande. Nos dois textos, assim como em toda a coletânea, a comprovação da vitalidade da filosofia estética na contemporaneidade, muito além dos temas e das obras clássicas. Mas sem ignorá-los.
O que resta: arte e crítica de arte
. De Lorenzo Mammì
. Editora Companhia das Letras, 384 páginas, R$ 59,50
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